29
Outubro

Prestem atenção à luz e ao som, esqueçam a imagem

Pedro Cabral Santo desenvolve uma proposta “telúrica online”, onde nos introduz numa aventura entre a imagem e o texto. Prestem atenção à luz e ao som, esqueçam a imagem propõe-nos a contemplação de 15 “pores-do-sol”, obtidos a partir do mesmo enquadramento e ângulo durante quinze dias seguidos, tendo em conta o acerto da hora crepuscular. No fim da luz, após o pôr-do-sol, no início da noite, tomam lugar poemas.

30
Outubro

Amigo

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill

29
Outubro
31
Outubro

Saudades

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca

30
Outubro
1
Novembro

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fernando Pessoa
Fragmento do poema “Tabacaria”

31
Outubro
2
Novembro

A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas.

Carlos Drummond de Andrade
Fragmento do poema “A Máquina do Mundo”

1
Novembro
3
Novembro

Sailing to Byzantium

An old man, the speaker says, is a “paltry thing,”
merely a tattered coat upon a stick,
unless his soul can clap its hands and sing;
and the only way for the soul to learn how to sing is to study “monuments
of its own magnificence.”
Therefore, the speaker has “sailed the seas and come / To the holy city
of Byzantium.”
The speaker addresses the sages “standing in God’s holy fire / As in the gold
mosaic of a wall,”
and asks them to be his soul’s “singing-masters.”
He hopes they will consume his heart away,
for his heart “knows not what it is”— it is “sick with desire / And fastened
to a dying animal,”
and the speaker wishes to be gathered “Into the artifice of eternity.”
The speaker says that once he has been taken out of the natural world,
he will no longer take his “bodily form” from any “natural thing,”
but rather will fashion himself as a singing bird made of hammered gold,
such as Grecian goldsmiths make “To keep a drowsy Emperor awake,”
or set upon a tree of gold “to sing / To lords and ladies of Byzantium / Or
what is past, or passing, or to come.”

William Buttler Yeats
ragmento do poema “Sailing to Byzantium”

2
Novembro
4
Novembro

Le cimetière marin

Ce toit tranquille, où marchent des colombes,
Entre les pins palpite, entre les tombes;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencée
O récompense après une pensée
Qu'un long regard sur le calme des dieux!
Quel pur travail de fins éclairs consume
Maint diamant d'imperceptible écume,
Et quelle paix semble se concevoir!
Quand sur l'abîme un soleil se repose,
Ouvrages purs d'une éternelle cause,
Le temps scintille et le songe est savoir.
Stable trésor, temple simple à Minerve,
Masse de calme, et visible réserve,
Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi
Tant de sommeil sous une voile de flamme,
O mon silence!… Édifice dans l'âme,
Mais comble d'or aux mille tuiles, Toit!
Temple du Temps, qu'un seul soupir résume,
À ce point pur je monte et m'accoutume,
Tout entouré de mon regard marin;
Et comme aux dieux mon offrande suprême,
La scintillation sereine sème
Sur l'altitude un dédain souverain.
Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée,
Et le ciel chante à l'âme consumée
Le changement des rives en rumeur.

Paul Valéry
Fragmento do poema “Le cimetière marin”

3
Novembro
5
Novembro

The Raven

Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
'Tis some visitor,' I muttered, 'tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
Sir,' said I, 'or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, 'Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, 'Lenore!'
Merely this and nothing more.

Edgar Allan Poe
Fragmento do poema “The Raven”

4
Novembro
6
Novembro

E Então, Que Quereis?...

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

Maiakóvski
Fragmento do poema “E Então, Que Quereis?...”
(Tradução de E. Carrera Guerra)

5
Novembro
7
Novembro

America

America I've given you all and now I'm nothing.
America two dollars and twenty-seven cents January 17, 1956.
I can't stand my own mind.
America when will we end the human war?
Go fuck yourself with your atom bomb
I don't feel good don't bother me.
I won't write my poem till I'm in my right mind.
America when will you be angelic?
When will you take off your clothes?
When will you look at yourself through the grave?
When will you be worthy of your million Trotskyites?
America why are your libraries full of tears?
America when will you send your eggs to India?
I'm sick of your insane demands.
When can I go into the supermarket and buy what I need with my good looks?
America after all it is you and I who are perfect not the next world.
Your machinery is too much for me.
You made me want to be a saint.
There must be some other way to settle this argument.
Burroughs is in Tangiers I don't think he'll come back it's sinister.
Are you being sinister or is this some form of practical joke?
I'm trying to come to the point.
I refuse to give up my obsession.
America stop pushing I know what I'm doing.
America the plum blossoms are falling.
I haven't read the newspapers for months, everyday somebody goes on trial
for murder.
America I feel sentimental about the Wobblies.
America I used to be a communist when I was a kid and I'm not sorry.
I smoke marijuana every chance I get.
I sit in my house for days on end and stare at the roses in the closet.
When I go to Chinatown I get drunk and never get laid.
My mind is made up there's going to be trouble.
You should have seen me reading Marx.
My psychoanalyst thinks I'm perfectly right.
I won't say the Lord's Prayer.
I have mystical visions and cosmic vibrations.
America I still haven't told you what you did to Uncle Max after he came over
from Russia.

Allen Ginsberg

6
Novembro
8
Novembro

Her own clasped hands

Preface to a Twenty Volume Suicide Note
Lately, I've become accustomed to the way
The ground opens up and envelopes me
Each time I go out to walk the dog.
Or the broad edged silly music the wind
Makes when I run for a bus...

Things have come to that.

And now, each night I count the stars.
And each night I get the same number.
And when they will not come to be counted,
I count the holes they leave.

Nobody sings anymore.

And then last night I tiptoed up
To my daughter's room and heard her
Talking to someone, and when I opened
The door, there was no one there...
Only she on her knees, peeking into.

Amiri Baraka

7
Novembro
9
Novembro

A child said, What is the grass?

A child said, What is the grass? fetching it to me with full
hands;
How could I answer the child?... I do not know what it
is any more than he.

I guess it must be the flag of my disposition, out of hopeful
green stuff woven.

Or I guess it is the handkerchief of the Lord,
A scented gift and remembrancer designedly dropped,
Bearing the owner's name someway in the corners, that we
may see and remark, and say Whose?

Or I guess the grass is itself a child… the produced babe
of the vegetation.

Or I guess it is a uniform hieroglyphic,
And it means, Sprouting alike in broad zones and narrow
zones,
Growing among black folks as among white,
Kanuck, Tuckahoe, Congressman, Cuff, I give them the
same, I receive them the same.

And now it seems to me the beautiful uncut hair of graves.

Tenderly will I use you curling grass,
It may be you transpire from the breasts of young men,
It may be if I had known them I would have loved them;
It may be you are from old people and from women, and
from offspring taken soon out of their mother's laps,
And here you are the mother's laps.

This grass is very dark to be from the white heads of old
mothers,
Darker than the colorless beards of old men,
Dark to come from under the faint red roofs of mouths.

Walt Whitmam
Fragmento do poema "Leaves of Grass"

8
Novembro
10
Novembro

Soneto da saudade

Quando sentires a saudade retroar
Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso.
E ternamente te direi a sussurrar:
O nosso amor a cada instante está mais vivo!
Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos
Uma voz macia a recitar muitos poemas…
E a te expressar que este amor em nós ungindo
Suportará toda distância sem problemas…
Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve
Como uma pluma a flutuar por sobre a neve,
Como uma gota de orvalho indo ao chão.
Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,
Sempre que juntos, a emoção que partilhamos…
Nem a distância apaga a chama da paixão.

Guimarães Rosa

9
Novembro
11
Novembro

Brise marine

La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres.

Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres

D’être parmi l’écume inconnue et les cieux!

Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux

Ne retiendra ce cœur qui dans la mer se trempe

O nuits! ni la clarté déserte de ma lampe

Sur le vide papier que la blancheur défend

Et ni la jeune femme allaitant son enfant.

Je partirai! Steamer balançant ta mâture,

Lève l’ancre pour une exotique nature!

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,

Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs!

Et, peut-être, les mâts, invitant les orages

Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages

Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...

Mais, ô mon cœur, entends le chant des matelots!

Mallarmé

10
Novembro
12
Novembro

Estar Só é Estar no Íntimo do Mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa

11
Novembro

O Amor em Visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Herbeto Helder