Os Jurupixuna
Facto desconhecido fora dos círculos de museologia, ou simplesmente para aqueles desatentos aos desenvolvimentos tecnológicos, o princípio deste século tem produzido um movimento generalizado de digitalização de coleções museológicas. Entre esses métodos tecnológicos incluem-se técnicas de captura, visualização e modelação tridimensional de artefactos ou até mesmo de ambientes (cavernas, florestas, acervos inteiros): fotografia de captura rápida ou fotogrametria, tecnologias laser, ou mesmo técnicas de TC — métodos de captura de dados, posteriormente processados em nuvens de pontos que permitem a sua renderização bidimensional ou simulação tridimensional. Esta tendência global de digitalização tem produzido um tráfego de objetos culturais jamais visto desde os tempos de Napoleão, desta vez no sentido contrário, isto é, dos países ditos desenvolvidos para aqueles outros ditos pouco civilizados. O investimento financeiro em países outrora subdesenvolvidos, juntamente com a decadência dos centros ocidentais, muito tem contribuído para esta migração. A verdade é que a maioria dos museus, herdeiros legítimos do positivismo, vê a digitalização como um progresso tecnológico determinista a ser seguido — a desmaterialização da obra de arte por fim alcançada. E se a princípio os pedidos de devolução de exemplares culturais ou artísticos preservados nos seus acervos foram encarados como uma ameaça, baseada tanto num certo racionalismo (a ausência de critérios mínimos de preservação em países outrora subdesenvolvidos) quanto num preconceito (o atraso geral desses outros países ou comunidades), à medida que os processos de digitalização têm evoluído, são agora os próprios museus, pressionados pelos seus governos endividados, que se apercebem das vantagens económicas de renunciar à preservação dos seus exemplares, devolvendo-os de bom grado. Assim, não é apenas uma nova economia o que a tecnologia tem gerado, num sector cultural da sociedade encurralado entre a popularização ou o endividamento das suas instituições, mas também um outro modelo para essas mesmas instituições no sector cultural. Eis o raciocínio, inteligente, sem dúvida: uma vez digitalizados os seus acervos, o pressuposto público dos museus encontra-se cumprido, podendo estes então dispensar a materialidade das suas coleções. Estas podem agora ser partilhadas livremente na rede, ou mesmo ser replicadas por impressão tridimensional, como de resto tem sido o caso. Réplicas perfeitas são produzidas e tomam o lugar dos originais; caso o museu assim deseje, é possível induzir na réplica uma deterioração parcial da obra, de modo que a diferença entre o original e a cópia se torne absolutamente invisível a olho nu ou não especializado. Deste modo, preenchem-se subitamente os acervos do suposto subdesenvolvimento, festeja-se a glória do Estado-nação, e alegram-se as reduzidas comunidades locais há muito roubadas. No entanto, qualquer acesso às digitalizações, frequentemente requisitadas para estudo, é-lhes vedado. A propriedade é do instituto que digitaliza e o lucro exclusivo, reciclando-se sob uma nova forma o ciclo de endividamento colonial.
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1997 e os Jurupixuna a atravessar o Atlântico, para serem expostos na cidade de Manaus, a capital branca do Amazonas, como os Jurupixuna certamente diriam caso pudessem, por uma qualquer razão mágica há muito perdida, falar. O local escolhido para a exposição foi o Palácio Rio Negro, construído em 1903 pelo barão da borracha, o alemão Karl Waldemar Scholz, quando o ciclo da borracha no Amazonas estava em ação, e mais tarde vendido quando este enfraqueceu, nos anos da grande guerra. Primeiro a outro seringalista, e novamente vendido e remodelado para se tornar a casa do governador, função que manteve até fins do século XX. Por fim, transformado em respeitado centro cultural dedicado às artes, cultura e história da região. Mordazmente, assim se expõem os Jurupixuna: suspensos, à espera, nunca verdadeiramente serenos, como sugeriu certo dia um visitante da exposição — o vislumbre das feições Jurupixuna, por breve que seja, é tão fascinante como horrendo.
Esta é a primeira exposição dos Jurupixuna no seu local de origem, desde a sua transladação para Portugal pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira entre 1783 e 1792, aquando da sua Viagem Filosófica pelas terras do Brasil. Feito o convite, para o Museu de Ciência e Antropologia da Universidade de Coimbra a escolha foi óbvia: um grupo de Jurupixuna do há muito extinto grupo Juruna — grupo indígena originário da região do Rio Japurá, no sudoeste do Amazonas, mais tarde transferido pelos portugueses para o nordeste, ao longo do Rio Negro, onde os seus últimos representantes acabariam por ser mortos ou desaparecer. Os últimos dos Jurupixuna são órfãos. Primeiro a colonização, o exame, a conversão e a apropriação, a demarcação e o extermínio; depois o museu devolve, penitente, humanista, apresentando aos indígenas os seus antepassados — fossem os índios seres crédulos e não seria de admirar que o retorno dos Jurupixuna fosse encarado como um retorno dos espíritos, devolução invariavelmente carregada de um elevado teor de predação, seja dos índios para com os Jurupixuna ou do museu para com os índios. Sobre os espíritos, é difícil dizer, os índios nada revelam. Ao saber-se do retorno iminente, ainda que temporário, dos Jurupixuna, várias comunidades indígenas da região logo se prepararam para receber os seus antepassados — os índios estavam curiosos.
O empréstimo temporário dos Jurupixuna, entre outros trezentos elementos, levantou uma série de paradoxos a ser resolvidos por F. D. Tarde, curador português encarregue da exposição, escolhido, contudo, mais para cumprir o papel de cônsul temporário do que pelo seu currículo antropológico. Dentre os interesses anunciados pelos indígenas, incluía-se o uso do palácio para a orquestração de rituais, e nestes rituais a inclusão dos Jurupixuna. Em destaque nesta reivindicação estiveram os grupos Waimiri-Atroari e os Tuyuka. Alarmado, o museu não tardou em enviar um convite aos indígenas, concedendo-lhes a liberdade de construir um par de malocas no pátio do palácio e usá-las livremente, mas apenas caso os serviços educativos da exposição também as pudessem usar. Os índios acederam. O museu, no entanto, permaneceu perplexo com a ideia, invocada pelos indígenas, dos supostos direitos (os modos) dos Jurupixuna, como se estes tivessem de algum misterioso modo uma agência ou subjetividade própria — no fundo, a sua surpresa advinha do modo como os indígenas se haviam apropriado da linguagem legal de negociação, articulando a sua cosmologia no interior da lógica moderna. Porém, já com ambos os pés no Amazonas, a perspicácia dos índios pouco surpreendeu F. D. Tarde. Contra Cristo, a Igreja, a Economia Política e a Lei. A posse contra a propriedade. Por quinhentos anos, a perda dos ameríndios é o resultado de um (outro) mundo regido pela Lei. No entanto, e cada vez mais, os índios das Américas têm aprendido com o seu pecado original — a sua inabilidade em compreender, ou melhor dito, em seguir a razão — distorcendo a retórica legal, o discurso (do outro), a seu favor.
Feito o negócio, no interior das malocas são ensinadas semanalmente técnicas artesanais indígenas e padrões tatuados em peles brancas. Ambas as malocas foram construídas pelos Waimiri-Atroari e pelos Tuyuka, respetivamente. A primeira foi construída em três dias por trinta índios, com materiais e ferramentas trazidas pelos Waimiri-Atroari — agora é um cenário, um diorama vivo, que simula uma vida comunal. A segunda quase alcança as varandas do palácio, e é usada para rituais, narrações e manufatura artesanal. O contraste entre o regimentar operado pela planta do palácio, como se uma materialização sublimada do racismo científico do homem branco se tratasse, e o comunalismo aberto das malocas, impressiona, de facto. Duzentos anos após a primeira grande expedição naturalista feita pelos portugueses ao interior da selva brasileira, após todo o extermínio resultante da escravatura da borracha, do ouro, da madeira, do petróleo, da trans-amazónica e do investimento militar, os índios têm por fim uma vitória sobre o palácio branco. Não tardou, ainda assim, em que os índios abandonassem a área que lhes havia sido destinada, desinteressados pela mundana profanação da sua linguagem e visão cosmopolítica, para sempre vedada ao homem branco, independentemente da sua experiência e boa vontade. Com ou sem autorização, os índios estavam dispostos a ocupar a sala dos Jurupixuna.
Para os indígenas, os Jurupixuna vinham com normas e preceitos específicos — a sua visão é interdita a mulheres e crianças; apenas aos homens, em particular aos já iniciados, lhes é permitida a presença. F. D. Tarde compreendia. Por fim, foi-lhes destinada uma sala do palácio, escurecida e adaptada com um programa de computador concebido com o propósito de regular a luminosidade da sala, focos de luz que, por breves instantes apenas (10 segundos), iluminariam um Jurupixuna de cada vez. A contemplação não seria permitida. O museu consentiu. E, ainda assim, o gesto não satisfez os indígenas, de modo que F. D. Tarde viu-se forçado a permitir a presença diária de um índio à entrada da sala, interditando, a certa hora, a entrada a visitantes. Para o palácio, a inclusão dos indígenas era tarefa fácil, senão mesmo obrigatória, institucionalmente cosmopolita. A solução encontrada para os Jurupixuna, pelo contrário, implicava um processo explícito de exclusão difícil de justificar.
Visitantes que entram, atentos, receosos, ignorantes, contaminados pelo peso característico de um museu, surpreendem-se mas apressam o passo, de volta à luz dos corredores do palácio. Ocasionalmente, no entanto, demoram-se os visitantes, um ou dois, aguardando expectantes, no escuro, na procura, em vão, por detalhes naquelas vagas, obscuras silhuetas, iluminadas em turnos, mais próxima, mais lá ao longe (mas há outra presença mais longínqua ainda, turva, iluminada de súbito, o visitante sabe). Uma instalação frustrante, reconhece o antropólogo Tarde, mas justa, e, para mais, profissional. Na espera, revelam-se os Jurupixuna, evidentes na sua estranheza. Olhos no olhos, um olhar sobre a antropomorfia, ou zoomorfia (dependendo da perspetiva), para encontrar no interior do outro, para lá da sua forma, uma familiar, inegável, ainda que estranha, humanidade. Fugaz, apaga-se a luz, e vai-se o sentimento. Devolvido à penumbra da sala, permanece a semelhança entre a forma e a qualidade, como se fosse uma imagem impressa na retina do observador, uma imagem em negativo daquilo que se julga ter visto, ou, pior, daquilo que se julga ser.
ele vê uma onça; | eu vejo uma onça, diz ele; | os arquivos do museu registam uma onça; | aquilo vê um homem. |
ele vê um macaco; | eu vejo um macaco, diz ele; | os arquivos do museu registam um macaco; | aquilo vê um homem. |
ele vê um peixe; | eu vejo um peixe, diz ele; | os arquivos do museu registam um peixe; | aquilo vê um homem. |
ele vê um morcego; | eu vejo um morcego, diz ele; | os arquivos do museu registam um morcego; | aquilo vê um homem. |
ele vê, claramente, um tamanduá; | eu vejo, isto é claramente um tamanduá; | os arquivos do museu registam um tamanduá; | aquilo vê, potencialmente, um predador. |
ele vê bizarras criaturas, as quais não consegue identificar; | eu vejo macacos, macacos enraivecidos, furiosos, diz ele; | os arquivos do museu registam n/a; | aquilo vê um predador. |
ele vê um mamífero de pele vermelha, e a cabeça de um jacaré a saltar da sua boca; | eu vejo um animal saltando da boca de outro animal, diz ele; | os arquivos do museu registam n/a; | aquilo vê que isto pode ser um homem. |
ele vê três criatura bicéfalas; | eu vejo uma coruja das costas da qual sai um jaguar bebé, diz ele, eu vejo um bovino siamês, eu vejo uma criatura qual Jano, a qual não consigo identificar, em torno da sua cabeça (as suas faces) orbitam anéis como os de Saturno; | os arquivos do museu registam criatura bicéfala; | aquilo vê e compreende. |
No interior da sala, por uma hora diária apenas, reúnem-se os índios na penumbra, em pé, sentados, mas cada qual a cantar, a fumar, a beber cauim, a queimar incenso que se infiltra pela ventilação do palácio, para transtorno da direção em mais uma roda de negociação encurralada entre os direitos indígenas e a logística museológica, ou, pior, arriscando a ofensa ou o desrespeito. Alastra-se pelo palácio um murmúrio intraduzível. O fumo domina, impregnando-se nos espaços de exposição, nas salas dos governadores, na coleção real, nos móveis de mogno amazónico, na biblioteca de madeiras coloniais (colonizadas). Nos visitantes, um nervosismo culpado. Na direção do palácio, um desconforto orgânico. Na sua imaginação é uma alucinação de Manaus, como se a floresta planeasse um cerco à cidade, a vegetação marchando viral na conquista do que é, naturalmente, a sua propriedade — eis como o palácio imagina o interior da sala, quando não lhe é permitido entrar, rituais pré-coloniais codificadas por livros, cultura e educação. Porém, no interior da sala não há qualquer canto senão um cancioneiro pré-gravado reproduzido por telefonia, projetado a um volume alto o suficiente para impressionar. Não há qualquer fumo, apenas um queimar de folhas secas para atear a imaginação daqueles que estão no exterior. Não há sequer qualquer bebida, apenas um teatro distraindo das verdadeiras intenções do grupo.
Ali, contra as normas, os Jurupixuna são removidos dos seus pedestais. A sua manipulação é algo que o museu não havia considerado, e no entanto os índios estudam os Jurupixuna: o seu interior e exterior, a costura, o tipo de madeira usada para a estrutura, a casca de árvore feita pele, a juta por vezes usada (pendendo de excêntricos focinhos, de orelhas meio animal meio humano), a composição da pintura, a geometria dos padrões pintados (variações relativas ao animal inspirado). Os índios despendem o tempo necessário à observação da manufatura dos Jurupixuna, aproveitando-se da negociação para reaprender técnicas roubadas, para reproduzir os Jurupixuna, para multiplicar a sua existência fora de controlo, no cumprir de uma função, seja ritual ou comercial. Tamanha manipulação é algo que poderia, certamente, ter sido negociado, um interesse permitido pelo museu, ainda que, possivelmente, pelas razões erradas. Pelo contrário, decidiram-se os índios, voluntariamente, por ocultar o seu interesse. Como afirmaram os Jesuítas em certo século, os selvagens destas terras têm grande prazer na traição.
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Nos arquivos do Museu de Ciência e Antropologia da Universidade de Coimbra, a partir dos quais se reproduziram as legendas para a exposição no Palácio Rio Negro, lê-se (para um único exemplo dos Jurupixuna, entrada no catálogo “ANT.Br.144”):
“Bicéfala de entrecasca. Capacete cilíndrico achatado apresentando de um lado uma carantonha protuberante e, do lado oposto, uma outra, mais achatada. A cara protuberante tem órbitas salientes pretas, sendo o fundo branco pintalgado de preto, enquanto o globo ocular é uma grossa bola de cerol. A boca mostra quatro dentes arredondados em cada maxilar e entre eles há quatro orifícios que facilitariam ao portador a visão ou a respiração. O focinho é protuberante, com ventas pronunciadas e as bochechas apresentam-se salientes, cobertas originalmente de tinta branca. A parte que falta numa das orelhas foi substituída por arame. A entrecasca das orelhas foi pintada de bege e uma faixa da mesma cor circunda todo o contorno negro da face. A cara achatada também tem a indicação de bochechas, mas elas não são salientes: um círculo branco indica-as no meio da larga faixa preta que abrange a boca e sobe para a testa onde, logo acima, se estende uma segunda faixa, mais larga, de coloração bege. Os olhos são redondos, salientes e pretos com fundo branco e bolas de cerol formam as pupilas. As ventas são redondas e salientes. A boca arreganhada tem fundo branco delimitado por quatro dentes arredondados em campos negros. A máscara distingue-se por três pares de vergas cobertas de entrecasca que quase emolduram as caras. A superfície do alto das duas cabeças apresenta decorações em preto, constituídas por o que se poderia chamar de motivos florais, delimitados por meias-luas pretas, contendo ou não círculos sem pintura interna. A máscara está fortemente retocada de vermelho.”
E esta descrição burocrática é o que interessa aos índios, não uma qualquer afirmação antropológica sobre a sua legitimidade ou os seus atributos mágicos. Também a informação computacional e a sabedoria inumana do conhecimento algorítmico (a sua capacidade de viajar no tempo, prever o futuro, reviver o passado) seria, anos mais tarde e no advento da tecnologia, de interesse para os indígenas. Na casca de árvore, orelha a orelha, do pescoço à testa, cabeça a cabeça naqueles bicéfalos, queimam-se partículas de tecido no mapeamento — no silêncio robotizado do laboratório escuta-se o simples zumbido da diagramatização operado pela máquina, e o cálculo dos custos a ser pagos pela seguradora. Presas torcidas que brilham, lábios áridos que se avermelham, suculentos por um instante apenas, enquanto segue o mapeamento na direção de órbitas que de súbito ressuscitam vivos em crânios de forma, aparentemente, animal. Cabeças, antes volumosas, agora bidimensionais, manipuladas por algoritmo, e padrões tatuados e círculos e escamas por fim libertos de materialidade, devolvidos aos astros e às plantas na aura energética oferecida pela computação. Estarão vivos? Os Jurupixuna e o olho computacional, laser vermelho ou verde, ressuscitando de uma morte com dois séculos, uma vida à qual o homem biológico não consegue aceder, não consegue compreender cosmologicamente: vida traduzida na forma de peles digitais, a imagem-pele da informação. Diminutas diferenças, como espíritos ocultos ao homem civilizado, agitam-se felizes no conforto virtual. Para serem processados numa rigidez replicada em plástico, petróleo, vida orgânica decomposta, no fundo, matéria pré-humana, mas também ela colonizada.
Certo dia, na estação das chuvas, surge em Santarém um Jurupixuna no mercado de artesanato local, a ser vendido por preço modesto. Materialmente, é uma reprodução fiel do original. São muitos os que se aproximam e regateiam pelo exemplar. A palavra espalha-se e torna-se história. Em simultâneo, bem do interior da floresta, escutam-se rumores de rituais mascarados como não se via desde o século XVIII; são intensamente perspetivistas, abundantes em cauim, e terminam em longos dias de vómito seguido de reclusão generalizada fundada na abstinência. Nesses períodos, as mulheres tomam o controlo das aldeias, e as crianças agem como se fossem guerreiros pigmeus. A confirmação de tais festividades, ratificadas pela compra de uma reprodução de Jurupixuna, causa a primeira das várias febres de frustração sentidas pelo antropólogo Tarde nos anos por vir — naquela fase, era-lhe impossível imaginar a sua futura contradição, ao ser responsabilizado pela restituição final dos Jurupixuna à floresta. Escapava-lhe a dedicação e o cuidado profissional que havia imposto a si mesmo no que respeita à integridade dos Jurupixuna, essa integração responsável na cosmologia social à qual outrora haviam pertencido e nas comunidades às quais eram devidos. F. D. Tarde conhece bem o caso de outros exemplares etnográficos, também estes expostos no Palácio Rio Negro, outrora qualificados como arte indígena para turistas, isto é, a manufatura por nativos aculturados, no século XVIII e XIX, de objetos produzidos para os gostos do mercado europeu. E vem-lhe à mente, “Se os Índios continuam oprimidos e mantidos sobre controlo, porque haveria de ser diferente no século XXI?”
F. D. Tarde carregará tal frustração de volta para Portugal. Anos depois, atormentado ainda pelos procedimentos que havia negociado em 1997, argumentará contra a digitalização dos mesmos pelo museu e, entre gabinetes, contra a patenteação dos seus modelos virtuais. Sabia ele como os preceitos relativos aos Jurupixuna seriam suprimidos pela sua digitalização e provável viralidade na fronteira do mundo virtual. Quem sabe, no entanto, se não estará Tarde errado. Incapaz de segurar a tendência do novo século em lucrar com a total transparência da sociedade e da informação, perderá o caso. Confirmada a reprodução e circulação dos Jurupixuna no norte do Brasil, admitirá a sua depressão, acabando por trocar a inconstância dos ameríndios pela devoção estável dos grupos tribais da África Central. Incongruente consigo mesmo, porém, uma vez digitalizados os Jurupixuna, é F. D. Tarde quem permite o acórdão que os fará atravessar o Atlântico pela última vez. A devolução dos Jurupixuna à floresta pode bem ter sido o último gesto relevante do antropólogo. Do lado errado do Atlântico, antes de seguir e perder-se algures nas planícies de África, como se num reencenar da segunda vida de Rimbaud no Djibouti e em Adis Abeba, acabando por trocar de geografia e a aparente inconstância dos ameríndios pela devoção estável dos grupos tribais da África Central. Quanto à digitalização, será possível aos Jurupixuna compreender que sempre que o trabalho do homem produz uma tecnologia capaz de transformação social (do sextante ao computador) é também a propriedade que novamente se redefine — um conceito desconhecido pelos ameríndios? E serem o Jurupixuna a compreender, melhor que o homem, melhor que o antropólogo Tarde, o ecossistema vivo gerado na promessa da inteligência computacional? A resposta pode bem estar na floresta.
Lista de Máscaras
· Fibra vegetal\cipó
· Cera\cerol
· Cera\cerol
· Cera\cerol
· Entrecasca de árvore
· Fibra vegetal
· Fibra vegetal\cana
· Cera\cerol
· Pigmento
· Metálicos e ligas\arame
· Entrecasca de árvore
· Fibra vegetal\verga
· Cera\cerol
· Entrecasca de árvore
· Entrecasca de árvore
· Cera\cerol
· Pigmento
· Fibra vegetal
· Fibra vegetal\cana
· Cera\cerol
· Entrecasca de árvore
· Fibra vegetal\taboca
· Fibra vegetal\verga
· Cera\cerol
· Cera\cerol
· Pigmento
A Terceiro Direito, entidade promotora da plataforma raum:, agradece ao Museu da Ciência da Universidade de Coimbra a cedência das imagens provenientes da Colecção Online, disponível em http://museudaciencia.inwebonline.net
Pedro Neves Marques e os Jurupixuna
Pedro Lapa
Pedro Neves Marques (n. 1984, Lisboa) vive em Nova Iorque. Os seus trabalhos realizados em vídeo, fotografia e instalação têm prestado particular atenção ao papel da palavra no domínio das artes visuais. Desde a primeira exposição individual, Imagética Abreviada (2008), que o recurso à escrita emerge como um suplemento para a vivência da própria visualidade. O texto como possibilidade do conhecimento da imagem, que parcialmente se revela e se distancia da apropriação discursiva, e a imagem como documento de um vivido, que nela se suspende e afasta, constituíram desde logo uma recorrência nos seus trabalhos destinada a reclamar a emergência de uma subjetividade. Por isso, esta manifesta-se como um processo dialético relativo às formas de poder que circunscrevem o processo. A partir de trabalhos como The Tigris Expedition (1978), ou Uma Cortina de Fumo/Mármore e Vidro, este realizado em colaboração com André Romão e ambos de 2010, a pesquisa dos traços da experiência do vivido e respetiva subjetivação esbarram com uma ordem de poderes, como ocorre com o antropólogo Thor Heyerdahl, de The Tigris Expedition (1978), que ao reconstruir um barco sumério e realizar uma expedição através do Índico e do Golfo Pérsico, à semelhança das rotas de há 5000 anos, ao entrar no Mar Vermelho se vê impedido de continuar pela ocorrência dos conflitos políticos e bélicos do presente. As sobreposições dos diversos confinamentos políticos a par dos documentos dos gestos de rutura ganham, a partir destes trabalhos, uma hibridez temporal. Os seguintes passam a convocar diversas ordens de saberes que se implicam e desdobram, para além da especificidade disciplinar, numa teia de relações produtora de uma declarada hibridez cultural.
Exemplar deste processo será o filme Where to sit at a dinner table? de 2012, onde a partir de imagens de uma tapeçaria com desenho de Albert Eckhout, intitulada O Combate dos Animais, é citado um verso do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, com fundo composto pela música Verdade Verdadeira de Martinho da Vila, dando então sequência a uma reflexão baseada nas teorias ecológicas emergentes na década de 1950 sobre o ecossistema e as distribuições de energias, a partir de ensaios de A. Tansley, H. Odum e D. Worster fundados no princípio da homeostase, que permite articular estas com teorias associadas aos conceitos de individualidade e participação no funcionamento do sistema de autorregulação dos mercados, característica do neoliberalismo económico. Os desdobramentos que o filme realiza dos diferentes níveis e práticas discursivas que convoca promovem uma interrogação sobre o destino e ajustamento da ecologia no quadro do próprio capitalismo, transformando-os numa generalizada antropofagia, que a imagética da tapeçaria sugere desde o início do filme. Através de um processo afim de uma arqueologia dos saberes, da descrição das suas práticas e forças, bem como de uma estrutura intercalada e densa de diferentes segmentos narrativos, Pedro Neves Marques produz uma deriva capaz de perscrutar e dar a ver o percurso dos diferentes processos de conhecimento e subjetivação na sua confluência com a estrutura do capital. Se este filme se aproxima da noção de filme ensaio pela interarticulação dos saberes que reúne, a sua contínua associação produz um desenvolvimento declaradamente narrativo com implicação na construção do sentido. Os Jurupixuna (2014) vem assim dar continuidade a este tipo de desdobramento narrativo. Se em Where to sit at a dinner table? as relações identitárias entre os colonizadores e os ameríndios, através dos rituais antropofágicos descritos, consistiam em processos de suspensão e transformação da identidade por destes últimos, como resistência à imposição identitária do colonizador, a sua recusa confluía também num sistema antropofágico regulado e compatível com a ordem ecológica e capitalista. De tal forma que naturalização do capitalismo ou expansão viral do mesmo se confundem.
Com Os Jurupixuna, Pedro Neves Marques parte de um conjunto de considerações sobre os processos de arquivo e reprodução dos artefactos e ambientes de civilizações colonizadas na sua relação com a tecnologia digital e respetivas consequências. O texto ensaístico dá lugar à exemplificação, que o transforma numa narrativa. O seu desenvolvimento constrói uma ficção inicialmente verosímil, depois ambígua, mas não menos significativa que a componente ensaística, sobre diferentes processos de apropriação cultural e os jogos de poder implícitos que aí se recortam. Ficção e processo de conhecimento ou reflexão especulativa tornam-se assim componentes indiscerníveis, reclamando uma infinita contaminação das suas fronteiras. A relação simétrica que Where to sit at a dinner table? estabelecia entre os Tupi e o colonizador ocorre em Os Jurupixuna a partir do retorno dos artefactos destes ao seu local de origem, através de uma exposição organizada em Manaus. O retorno é aqui o mecanismo que despoleta uma diferença originária, ou seja, os índios que de visitantes da exposição e descendentes próximos dos Jurupixuna, extintos há mais de dois séculos, se apropriam da própria exposição ao invadi-la para estabelecer com os artefactos uma nova relação de pesquisa e conhecimento, estruturalmente semelhante à do saber antropológico que organizou a própria exposição. São várias as simetrias que então ocorrem, como a manipulação e descrição exaustiva dos objetos, a exclusão temporária dos visitantes para efeitos de estudo, a limitação da iluminação de cada Jurupixuna a dez segundos, tal como as imagens que bloqueiam o texto de Pedro Neves Marques, e uma infinita procura de um traço humano comum na diferença patenteada pelos exemplares. À medida que a narrativa deste processo se desenvolve, torna-se evidente a infinita tarefa de tradução levada a cabo pelos índios nos processos percetivos que estabelecem e, por fim, na recriação e apropriação através de cópias, que se revela uma inevitável produção de híbridos. O contraste e bifurcação da simetria entre os dois processos de conhecimento manifesta-se na atitude relativa à pretensão de uma salvaguarda mitificadora da originalidade, que o antropólogo F. D. Tarde acredita preservar a partir do conhecimento disciplinar, e na valorização que os índios parecem fazer da consequência do conhecimento adquirido enquanto inevitável deriva. Como Pedro Neves Marques afirma a dada altura: «sempre que o homem produz uma tecnologia capaz de transformação social (do sextante ao computador) é também a propriedade que novamente se redefine». Em última instância, este é também o papel que o domínio ficcional imprime à imagem neste e em muitos outros trabalhos de Pedro Neves Marques.