Photo: André Cepeda
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sobre o projecto

Provisional Figures
de Marco Martins

Provisional Figures é a denominação dada em estudos estatísticos a todos os emigrantes com uma situação indefinida ou provisória presentemente a trabalhar no Reino Unido.

Culminando um processo de dois anos de investigação junto da comunidade portuguesa de Great Yarmouth, Provisional Figures propõe-nos uma reflexão sobre os problemas da identidade e da emigração num contexto urbano fortemente abalado pela crise económica e consequentes convulsões sociais.

Relativamente desconhecida em Portugal, esta emigração teve o seu auge nos anos da crise económica (2009-2014), tendo como destino as grandes fábricas de transformação alimentar (perús e galinhas) instaladas nesta zona do Norfolk inglês tradicionalmente fustigada pelo desemprego. Aproveitando a decadência desta vila costeira, outrora um destino balnear de eleição para os britânicos, as fábricas da região tiraram proveito da capacidade de alojamento dos hotéis e campos de caravanas semiabandonados para aqui instalar os seus novos trabalhadores.

Distante no tempo e no espaço das grandes vagas migratórias para França e Alemanha dos finais da Segunda Guerra, quando cerca de um milhão e meio de portugueses emigraram para fugir à fome e ao desemprego, a emigração portuguesa para Great Yarmouth distingue-se em tudo da sua precedente. Uma massa em permanente movimento do chamado “trabalho flexível” que surgiu como forma de responder às exigências dos novos sistemas económicos.

Trabalhando em Great Yarmouth com um grupo de nove habitantes de diversas nacionalidades, ao longo de vários meses, Marco Martins construiu um espetáculo a partir de uma ideia original de Renzo Barsotti, baseado nos testemunhos individuais de quem viveu de perto este período de incerteza, explorando as contradições do comportamento humano e a natureza das relações entre os homens e os outros animais.

Os textos e imagens desta residência são parte de uma extensa investigação conduzida por Marco Martins junto dos habitantes desta vila e da colaboração do artista com André Cepeda, Isabela Figueiredo e Gonçalo M. Tavares.

Europa (I)

Exactidão

E sabes como gostam do acto de medir. Do acto de olhar para uma coisa, tocar nela ao de leve e dizer um número, registar um número. É isto medir. Sabes como gostam de medir. No limite é olhar para uma coisa e registar um número que classifica essa coisa, que a identifica. Um olhar que identifica. No limite é isto. No limite olham e identificam. Não necessitam sequer de tocar na coisa. Tocar numa coisa é secundário, é um pormenor, é um acrescento. O Olhar é o importante. Tu podes medir olhando, sem tocar. Olhar é mais importante que tocar. São duas acções. E uma é melhor que a outra. É isto. É simples. E deves medir tudo, sabes como isso é importante. Porque medir é identificar com exactidão. E a exactidão é indispensável. Deves medir a moral de um acto de forma tão exacta como medes uma mesa. De cada medida tem que resultar um número. Se medes com exactidão a mesa onde almoças com os teus companheiros também te é exigido que meças com exactidão as acções dos teus companheiros. Com a exactidão de centímetros, de milímetros.
Medir com exactidão as acções dos outros e as palavras dos outros. Mas não só os actos e o discurso. É fácil medir o que se vê ou o que se ouve. Porque o que se vê e o que se ouve fica registado.

Europa (II)

Propriedade

Cada um quando entra tem direito a quatro metros quadrados. Quatro metros quadrados parece pouco, mas não é. Em quatro metros quadrados podes deitar-te no centro e rebolar duas vezes para cada lado. Rebolar duas vezes para cada lado é suficiente. Podes fornicar em pé. E se fornicares deitado, rebolar duas vezes para cada lado é suficiente. E quando bates na parede sentes que tens de virar para o outro lado. Habituas-te. É fácil.
E para os pesadelos não é necessário tanto. Ninguém rebola mais que duas vezes para cada lado num pesadelo. E se rebolar mais bate na parede e acorda.

Europa (III)

Números

Os objectos têm números. Os teus objectos pessoais têm números. Procura bem. Revira o objecto, analisa os seus cantos; em algum lado existe um número. Pode ter uma dimensão mínima, podes só conseguir vê-lo à lupa ou ao microscópio, mas existe um número. Todos os objectos têm um número. Todas as coisas têm um número. A roupa, os Livros, os móveis, cada parede. Até tu tens um número. Devias fazer a ti próprio, ao teu corpo, o que fazes a um objecto: virá-lo por completo e procurar o número. Todos têm um número. Não é visível aos olhos. São necessárias técnicas e são necessários instrumentos. Mas nem sempre as mesmas técnicas ou os mesmos instrumentos. Cada pessoa tem um número, mas pode tê-lo em milhentos sítios diferentes. Não há uma lógica, um sítio exacto.
O teu número pode estar escrito num orgão. Na pele dos pulmões. Ou mesmo numa célula. Ou podes ter o número no interior dos testículos. Ou no interior da uretra. Ou podes ter o número escondido, mas mais exterior.
Não se sabe onde, mas tens um número. Não se sabe como o poderás descobrir – podes descobri-lo por métodos aplicados com esse objectivo ou podes descobri-lo por acaso, por acidente, ou ainda porque alguém to descobre.
Mas tens um número. Todos têm um número.
Por vezes alguém a quem amputam um braço descobre o seu número escrito na carne que agora é exterior.

Europa (IV)

Registo

Tens de obedecer ao Estado de Registo. Eu digo-te como é. Toca uma sirene. Não é bem um som evidente. É um som homogéneo e constante que dói nos ouvidos.
Todos o reconhecem. Não há aqui nenhum som como esse. É o som do Estado de Registo.
Nos Estados de Registo eles são rigorosos em relação à propriedade privada. Consideram que um erro aqui é algo de muito grave. Um erro aqui não provoca Exclusão. Se falhares neste momento; se não te apoderares da tua parte de espaço individual, eles mexem-te no corpo. Eles abrem-te o corpo. Não ficam só cá fora. Não te batem. Entram dentro do teu corpo e fazem-te mal. Nesses minutos de espera o teu espaço privado será como o teu corpo. Se alguém entrar nele serás capaz de matar. Estás a defender a tua vida nesse momento. Não estás a defender os teus metros quadrados. Estás a defender a tua vida. E podes esperar muito até eles chegarem. Eles não são apressados. Podem surgir passado um minuto ou podem demorar horas. Por vezes demoram dias. Há Estados de Registo que podem demorar dias. Depende de pessoa para pessoa. Nunca se sabe. O que sabes é que tens de esperar no teu espaço até eles chegarem e fazerem o registo.

No Estado de Registo eles registam tudo. Quando chegam ao teu compartimento registam em primeiro lugar se estás vivo ou morto. Podes ter morrido no teu compartimento.
Se morreste é mais rápido. Há uma série de dados que eles não preenchem. Levam-te.
Se estás vivo dás mais trabalho. Por vezes parece que eles se aborrecem quando te encontram vivo. Em vez de perderem um minuto contigo perdem mais.
Se estás vivo medem-te, pesam-te. Analisam-te os dentes. Retiram-te sangue. Pedem-te que mijes para um frasco. Querem fezes tuas – esperam por elas o tempo necessário. Querem esperma, saliva. Recolhem tudo. Esperam o tempo que for necessário. É um registo dizem, não é uma visita. Querem registar tudo.

Eles só conseguem registar se não existir circulação. Por isso é que eles te obrigam a dirigires-te para o teu espaço e a parares. Não é só esperares na tua propriedade, é não te moveres até eles chegarem.
Escolhe a posição definitiva de espera, a pensar que eles podem demorar uma hora, mas também podem demorar dias. Não te esqueças disso.

O registo é muito importante. É um mapa. Eles têm o mapa do espaço e têm o mapa das propriedades individuais referentes aos metros quadrados e aos objectos. Em cada Estado de Registo actualizam o mapa.

Europa (V)

Dinheiro

São eles que te dão o dinheiro, claro. São eles que o têm. São eles que te dão o dinheiro e que to tiram.
Costumam fazê-lo no momento do registo. Além dos teus metros quadrados de propriedade e dos objectos, eles verificam quanto dinheiro ainda possuis, comparando com o anterior registo. Quando pedirem mostras todo o dinheiro. Não adianta esconder uma única moeda. Eles acabarão por a descobrir. Comparam o registo actual com todas as tuas circulações de dinheiro: o que compraste, quanto foi, o que vendeste. Registam todas as actividades comerciais de cada um. Depois é só fazer contas de somar. Não digas que só tens cinco notas se tens seis. Eles confirmarão tudo, e mentir sobre a quantidade de dinheiro que se tem não é um erro qualquer. É uma traição grave.
Não podes errar os números e só podes falar uma vez. Tu já sabes isso. É uma das leis principais. Quando falas é só uma vez. Tudo o que dizes é registado, é escrito. Deves demorar o tempo que quiseres antes de falar, mas quando falares diz só o certo, o verdadeiro, sem qualquer erro. Não podes corrigir o que disseste. Essas palavras são a tua tentativa de verdade: se forem um erro ou uma mentira eles actuarão. E com números esta exactidão da linguagem toma outra importância. Tu não podes voltar atrás ou reformular palavras ou números. Se disseres um número é esse número que fica registado, não poderás dizer mais nenhum.

Europa (VI)

Inquéritos

O que fazem com frequência são Inquéritos. Só querem a Verdade, e por isso fazem inquéritos. Querem confirmar se tu sabes a verdade. E um inquérito serve para confirmar se tu sabes a verdade.
Testam o teu conhecimento.

Fazem como sempre. O procedimento é idêntico ao do Exame Médico. Em qualquer sítio que estejas eles aproximam-se de ti, sem qualquer aviso, e dizem apenas isto: Inquérito.
Se te encontrares sentado tens de te levantar de imediato. Respondes sempre em pé aos inquéritos.
Os Inquéritos são também em espaços comuns.
No inquérito fazem-te perguntas num tom de voz baixo, e tu és obrigado a responder alto. Todas as pessoas que ali se encontram, ou que por ali passam, ouvem parte ou a totalidade das tuas respostas.
O inquérito é exaustivo. Perguntam-te o que fizeste, por que o fizeste.
Todos os momentos são questionáveis. Ninguém pode esconder nada: pensamentos, actos, tudo é inquirido e, portanto, tudo é exposto publicamente. Uns podem ouvir, outros não, mas és obrigado a revelares-te, inteiramente, a todos.

Europa (VII)

Informação

O conhecimento produzido relaciona-se com as técnicas e com as especializações de trabalho. Relatórios sobre os gestos, sobre os modos mais eficazes de resolver um problema. Essa produção de Conhecimento é permanente e em grande quantidade, vários volumes por dia. Os relatórios, em pouco tempo, são analisados e colocados num livro-relatório. Há livros-relatório com desenhos dos gestos da mão, modos de segurar, resultados de cada variante de gesto; números, estatísticas. O conhecimento produzido vem da análise do trabalho, mas não só. Existem inúmeras tabelas fixadas pelas paredes. Tabelas das hierarquias semanais, tabelas com os números resultantes dos exames médicos, tabelas com actualizações da normalização de alguns gestos ou de algumas frases, e ninguém por uma destas tabelas afixadas na parede sem a consultar. É que, por vezes, no meio de algumas informações irrelevantes, aparecem informações fundamentais. E quem não as lê pode vir a cometer erros graves, por mero descuido. Por isso ninguém arrisca. Em frente a cada tabela afixada ao longo do seu percurso, cada pessoa pára, consulta com cuidado os valores, confirma se existiu alguma alteração, e só depois, mais tranquilo porque mais informado, prossegue o seu caminho.

Europa (VIII)

As pessoas identificavam-se por números. Conhecer o número do outro revelava intimidade.
O importante é a eficácia global de trabalho. O somatório das eficácias individuais. Nos cursos de normalização costumam repetir: é muito difícil viver em grupo. E dizem: o que fazemos é unificar as vontades individuais numa única vontade. Não é fácil unificar as pessoas.

Gonçalo M. Tavares

O Hotel-Desemprego

Os cães

No hotel todos têm um cão. Por exemplo, os meninos dispõem-se a isso porque gostam de brincar às quatro patas. E cada senhor do hotel paga a mais para ter o cãozinho, inscrição feita logo no dia de entrada – Com ou sem cão? pergunta-se na entrada.
E muito poucos respondem Sem, pois conhecem bem o hotel e tudo o que estes dias e estas instalações podem oferecer.
As mulheres tendem a escolher meninos e os homens também tendem a escolher os meninos. As meninas-cão ficam assim para trás, ansiosas - por vezes acumulam-se no quarto dezenas de meninas-cão, disponíveis para os hóspedes, muito ansiosas. São raras as que são solicitadas.
Alexandra chega à porta e toca à campainha e a mais velha das meninas-cão abre a porta e todas estão atrás do ombro dela, ou de cócoras ou a rastejar, todos querem saber o nome da menina solicitada.
Alexandra, a patroa, diz alto o nome: há uma menina-cão que fica contente (ouve-se um gritinho), há dezenas delas que rangem os dentes, que gritam de uma forma indefinida; batem nas paredes, chamam nomes a Alexandra como se ela fosse a culpada de a sua fotografia de menina-cão não ter convencido.
E, claro, que Alexandra gosta de brincar com as meninas – estão todos na idade disso e Alexandra não é apenas a responsável pelo hotel, é também mãe e por isso percebe tudo. Atira-lhes, na brincadeira, pequenos biscoitos para cão, atira-os para o ar, para dentro do quarto, como se fossem guloseimas e fecha depois o quarto. Mas não é necessário fechar à chave porque as meninas sabem levar a brincadeira até ao fim.

Há também residentes mais velhos que fazem de cão-velho. Setenta, oitenta anos, mas ainda gostam de brincar às quatro-patas e de serem acariciados no cabelo, nas costas, e ainda conseguem curvar-se e andar a quatro patas e isso é uma demonstração de força e vigor e em parte são cães-velhos para fazer inveja aos senhores da sua idade, para mostrar que ainda sabem humilhar-se; que não perderam ao olhar dos outros uma certa potência; há hóspedes que olham para eles e ainda se excitam o suficiente para os querer perto de si, para os querer ao seu colo, para querer fazer-lhes festinhas, para quererem ser lambidos pelos cães-velhos. Os seus principais clientes, eis a surpresa ou não, são outros velhos, os com mais de setenta, oitenta anos, são esses hóspedes que ignoram os meninos-cão e optam pelos velhos a quatro patas.
As fotografias na recepção não são perfeitas, parecem tirados por um amador, mas os velhos assim a quatro patas fazem rir ou chorar, há quem ria às gargalhadas com o divertimento comum, há quem fique chocado. Talvez essas imagens choquem mais do que as dos meninos-cão. Pois os hóspedes conseguem ver nos meninos essa ânsia pelas quatro patas, mas nos velhos há por vezes a sensação de que eles poderão já ter perdido a memória, e nenhum hóspede quer ter, durante aqueles dias, um cão inconsciente, um cão quase louco, um cão que perdeu a memória e só finge que ladra porque já esqueceu a melhor maneira de falar com outro ser humano. Nenhum hóspede gosta disso.

A.

- Sabes mexer nisso, ó filho da puta?
- Estou a aprender, pai.
- Liga lá isso no ar. Vês? Aqui ligas, aqui desligas. Mais curto, menos curto. Fixas aqui. Ok? Entendido?
- Entendido.
- E começas e não paras, estás a ouvir?, não paras mesmo, vais até ao fim. Ok?
- Ok.
- Estás com medo? Não vais chorar, pois não?
- Não, não vou chorar.
- E mesmo que eu chore tu não paras, ok, combinado? acordo feito? Pai e filho?
- Acordo feito, sim. Não paro, aconteça o que acontecer, não paro. Mas o pai não vai chorar pois não?
- Não sei. Mas isso não te interessa. Continuas e vais até ao fim.

Pai e filho estão os dois em pé. Apertam a mão com força, nunca apertaram a mão assim, com tanta força.
Depois o filho põe as mãos em redor do corpo do pai. O filho começa a chorar. O pai está quase a começar a chorar, consegue controlar-se.
- Vamos lá filhote. Vou-me sentar e começas, ok?
O filho recupera os nervos. Concentra-se. Passa a mão pelos olhos e limpa-os. Pega na máquina, liga-a.

B.

São os meninos que fazem isto aos pais. Quando eles ficam desempregados. Não é logo de imediato, claro que não. Passa um mês, dois, três, seis, sete, oito e aí começa algo a adivinhar-se. Ao fim de um ano de desemprego são os filhos que fazem isto aos pais, assim está definido. Eles pegam na máquina e cortam o cabelo dos pais, por completo. Os pais são seres já dóceis e tudo está já bem aceite.
Há por isso tanta gente na rua assim, sem cabelo. Por vezes, ao longe, podem parecer doentes, pode parecer que vêm de algum tratamento violento e químico, mas não.
Outras vezes podem ser confundidos com grupos radicais, mas é evidente que são mansos; é gente mansa.
Lembram, sim, os prisioneiros. Mas estes agora estão totalmente livres, andam pela cidade. Aliás, mais livres do que alguma vez estiverem. Têm todo o tempo livre. Podem ir para a baixa da cidade ou para a parte alta da cidade. Apenas andando e vendo não precisam de dinheiro e são livres, estes seres sem cabelo.
São imensos, ocupam a cidade.
Muitos ficam em casa, claro, com vergonha. Mas, mais tarde ou mais cedo, não aguentam mais e têm de sair para a rua.
Se um helicóptero andasse a baixa altitude por cima das cidades veria estes homens e mulheres – e mulheres e mulheres, sim – estes homens e mulheres com a nuca a descoberto, com a bola da cabeça a descoberto, lembrando prisioneiros, seres doentes, fantasmas ou esqueletos que caminham.
E parece uma praga porque as cabeças sem cabelo vão alastrando.
E começam os crimes, uma espécie de inveja que acaba em loucura, em roubos, em homicídios. As pessoas ainda com cabelo começam a ter medo de andar na rua. São assaltadas, às vezes simplesmente insultadas ou maltratadas – passam à frente deles ostensivamente no Metro, nas portas, como se fossem os seres sem cabelo que tivessem mais pressa e os outros tivessem tempo e pudessem ser maltratados. E, sim, começam a aparecer homicídios. As pessoas com cabelo passam a ser os alvos.

C.

- Já vi o teu pai na rua. Vi-o ontem. Ia a sair de casa. Foste tu?
- Fui.
- Ele chorou?
- Não o meu pai está sempre com a mesma cara. Não muda. Não gosto dele. Tive algum prazer naquilo.
- Não acredito no que estás a dizer.
- É verdade. Tive prazer naquilo.
- E a tua mãe?
- A minha mãe estava na cozinha como se não estivesse a acontecer nada. Fez o jantar e não disse uma palavra. Eu cheguei à mesa primeiro, depois veio o pai, e ela não disse nada. Nem uma palavra. Ela é dura, aguenta tudo. A mãe estava calada no início do jantar mas depois começou a falar como costuma falar às refeições, daquelas coisas que não têm importância nenhuma, nenhuma mesmo. O pai ouvia-a. Não dizia nada, mas muitas vezes é assim. Parecia quase um dia normal. Só o meu irmão é que estragou todo, é um imbecil. Começou a fazer perguntas. Por que é que cortaste o cabelo ao pai? É um estúpido.

A minha mãe disse que era para um novo trabalho do pai. Que ele precisava de cortar o cabelo para que o cabelo não atrapalhasse no novo trabalho. O meu irmão, estúpido, perguntou que novo trabalho era e a minha mãe respondeu que era andar na rua, logo de manhã. O meu irmão perguntou depois – andar na rua a fazer o quê? e a minha mãe respondeu que era a ver se havia trabalho para as pessoas, que ele ia andar na rua para ver se havia trabalho para as pessoas. O meu irmão depois calou-se até porque a minha mãe começou a falar de outra coisa. O meu pai não abriu a boca todo o jantar. Eu senti-me o chefe de família, senti-me orgulhoso, porque era eu que ainda tinha cabelo - mas a meio tive vontade de chorar e chorei. Baixei a cabeça e comecei a chorar. Não parei, estive dez minutos a chorar baixinho na mesa, as lágrimas a correrem para o prato, para a comida. A certa altura até comecei a gostar disso, a sentir quase orgulho de estar a chorar. O meu irmão mais novo já tinha saído há muito tempo da mesa, não percebeu nada. A minha mãe também tinha saído, queria distrair o puto com outra coisa - fiquei só eu e o meu pai. O meu pai não disse uma palavra. Ficámos dos dois só na mesa e claro que ele percebeu que eu estava a chorar mas não disse uma palavra, comeu, bebeu vinho como costuma beber e depois levantou-se. Não me disse nada, não se aproximou de mim, não me tocou, nada. Senti-me mal, senti que ele me estava a culpar. Mas eu não tenho culpa. Estava a sentir-me pior do que ele, se não me matei ontem, se não me matar hoje não me mato mais. Nunca me senti tão mal. Mas o meu pai hoje de manhã parecia outro. Estava sem cabelo e de manhã vê-lo assim chocou-me muito. Mas ele disse bom dia, disse bom dia a todos, estava bem-disposto. Disse que as coisas iam a mudar. Saiu logo de manhã. Disse que ia encontrar emprego em três semanas. Foi isso que ele disse hoje quando saiu de casa. Ia animado. Há muitos meses que não o via assim.

O fotógrafo

- É para quê?
- Para gostarem de ti.
- Para gostarem de mim?
- Para gostarem de ti.
- A quatro patas?
- Sim
- Assim?
- Isso. Agora levanta a cabeça.
- Assim?
- Isso.

- Mais.
- Mais?
- A cabeça
- Assim?
- Isso mesmo, está óptimo. O queixo para cima. Um pouco mais.
- Assim?
- Está perfeito.

- Descontrai mais o corpo, não sorrias. Faz um ar sério. A cabeça mais para cima, como se estivesses a ladrar.
- Assim?
- Um pouco mais para cima a cabeça, mas não faças som. Como se estivesses a ladrar para dentro. Isso.

Não é perfeito, mas é um emprego. É ele que fotografa os meninos e os adolescentes em poses de cão. São essas fotografias que, mais tarde, são colocadas à entrada do hotel. Os turistas chegam e vêem logo as várias hipóteses de companhia.
Sente-se a fazer castings para meninos-cão.

Gonçalo M. Tavares

Europa – Quatro histórias de ficção para tentar descrever a realidade

1. A evolução

“Um pássaro foi atingido com um tiro na asa direita e passou por isso a voar na diagonal.
Mais tarde foi atingido na asa esquerda e viu-se obrigado a deixar de voar, utilizando apenas as duas patas para andar no chão. Mais tarde foi atingido por uma bala na pata esquerda e passou por isso a andar na diagonal.
Uma outra bala atingiu-o, semanas depois, na pata direita, e o pássaro deixou de poder andar.
A partir desse momento dedicou-se às canções.”


Por vezes penso que a Europa se vai transformar em cantora, mas não por vontade própria.

2. A formação: a lentidão, a paciência

“Para treinar os músculos da paciência o senhor Calvino colocava uma colher de café, pequenina, ao lado de uma pá gigante, pá utilizada habitualmente em obras de engenharia. A seguir, impunha a si próprio um objectivo inegociável: um monte de terra (50 quilos de mundo) para ser transportado do ponto A para o ponto B - pontos colocados a 15 metros de distância um do outro.
A enorme pá ficava sempre no chão, parada, mas visível. E Calvino utilizava a minúscula colher de café para executar a tarefa de transportar o monte de terra de um ponto para outro, segurando-a com todos os músculos disponíveis. Com a colher pequenina cada bocado mínimo de terra era como que acariciado pela curiosidade atenta do senhor Calvino.”

3. A ajuda

“Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.”

4. A queda

“Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessários para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.”

Podemos pensar que o protagonista desta história é um ser fútil, apenas preocupado com as aparências, a quem apenas interessa (mesmo em tempo de queda, de desgraça, de tragédia) a gravata estar bem posta e os atacadores dos sapatos bem apertados. Este é, sem dúvida, um ponto de vista possível. Mas há outras hipóteses de leitura desta história. E uma delas completamente oposta. Poderemos pensar que este senhor em queda (este país, ou este continente, a Europa) apesar de estar em queda, em plena tragédia, consegue manter a calma e a ordem. Mesmo em queda sabe orientar-se, no que de mais profundo tem esta palavra. Sabe onde está o seu lado esquerdo e o seu lado direito, sabe agir – apertar o nó da gravata, apertar os atacadores - mesmo sem qualquer apoio (o conceito de queda é este mesmo: um corpo que está em pleno ar a dirigir-se a grande velocidade para o solo, e sem qualquer apoio). Nesta segunda leitura, esta personagem em vez de ser vista como um ser fútil, que só liga as aparências, pode ser visto como um ser exemplar, que mesmo no meio de uma queda mantém a calma, a capacidade de agir.

Nota: as histórias de ficção são dos livros “O Senhor Brecht” e “O Senhor Calvino” de Gonçalo M. Tavares.

Gonçalo M. Tavares

1 – Um telefonema

Ao falar ao telefone com o encenador de Provisional Figures sobre o projeto, a minha reação primeira relativamente ao que escutava, e que lhe transmiti de imediato, foi de repulsa.
O Marco descrevia-me a situação de portugueses que trabalhavam numa fábrica de derivados de peru, no Reino Unido. Sempre houve portugueses a trabalhar em Inglaterra, mas com a crise o contingente aumentou. Na área onde resido deu-se uma debandada em direção a este destino. Famílias inteiras.
O trabalho dos emigrantes não costuma ser mister ao qual se atribua grande estatuto social, mas é trabalho honesto, e uma pessoa não faz perguntas: integram a linha de montagem de uma fábrica, exercem funções numa cozinha de hotel ou restaurante, colaboram num lar de idosos ou numa empresa de transportes, não interessa. Uma pessoa tem de ganhar a vida.
O Marco falava-me de gente que trabalhava de forma precária e desgastante num sítio onde se abatia, limpava, esviscerava e esquartejava peru. Interrompi-o e exclamei “fábricas de morte.” O Marco, do outro lado, fez uma pausa e repetiu a expressão, “fábricas de morte.”
Os matadouros são os piores lugares do mundo. Ninguém sabe onde ficam, o que por lá se passa nem quem aí trabalha se denuncia. É um trabalho que mancha e enluta quem o realiza. Há trabalhos maus e consigo lembrar-me de alguns, quase todos relacionados com escatologia, mas enfiar os dedos na morte, ainda quente, e sentir-lhe os fluidos, todos de vida, a escorrer pelos braços, não se deseja a ninguém. Exclamei, ainda, “isto é um assunto que evito, que me magoa, do qual fujo, e que ironicamente me persegue.” É verdade. Não sendo vegetariana, há muitos anos que eu não como carne de mamíferos ou de aves, por motivos éticos.
É do conhecimento público que sou filha única, muito protegida durante a infância, e que, na ausência de outras crianças, convivi com animais domésticos como companheiros de brincadeira. Entre as mais cruéis memórias que guardo desses anos estão as que se relacionam com o abate dos animais. Em minha casa havia galinhas e coelhos que tratávamos com desvelo. A minha mãe criava-os. Sabia fazer uma mistela para lhes curar as mazelas da pele, que apareciam, a certa altura, imagino eu, por não viverem em liberdade. Um coelho numa coelheira e galinhas em galinheiros são animais encarcerados. O composto da mistela da minha mãe era constituído por enxofre em pó, vendido a peso nas drogarias, e azeite de oliveira, tudo bem misturado numa malga e depois besuntado em focinhos, orelhas, bicos e cristas. Resultava. Os pelos e as penas voltavam a crescer lustrosos.
Alegrava-me. Tempos mais tarde, esses amigos eram abatidos, e poupo-me agora à memória desses momentos brutais cujo registo não quero rever.
Também havia cabritos, comprados bebés e criados em casa. Deixavam-me andar junto deles, brincar. Estou convencida de que sempre dialoguei com os bichos. Depois, seguiam o destino que a ordem dos costumes guardou para os animais e esperava-se que gostasse de comer a carne dos meus amigos no almoço pascal ou no aniversário. Uma aberração. Eu não tinha poder para recusar, apenas para mentir, disfarçar, enganar, mentir até onde fosse possível. É esse o poder dos pequenos. Foram refeições custosas. Comia o menos possível. Sentia-me canibal.
Não me lembro de ter tido grandes amigos da minha idade a não ser os cães, os gatos, os coelhos, as galinhas, os pássaros e as formigas. Os animais são sempre miraculosamente da nossa idade, seja ela qual for. Outros amigos que tive na altura não se encontravam no mesmo patamar de igualdade. A diferença de idade exigia um respeito diferente. Esses eram o meu pai e raparigas mais velhas, que já se pintavam e tinham namorados ou almejavam-nos, filhas de amigos, em quem os meus pais confiavam, e com as quais podia tratar de assuntos delicados. Rapazes, por exemplo. Mas as mais alegres brincadeiras foram com os animais, que me devolviam uma atenção genuína e sem condições.
Houve uma altura na vida em que deixei de conseguir encarar um pedaço de leitão ou uma faceira de porco, na travessa, sem imaginar o massacre de um bebé ou de um animal saudável e desmerecedor do tratamento. Comecei a olhar para um saboroso bife grelhado como aquilo que realmente é: uma peça de carne resultante do esquartejamento de um cadáver. Um talho transformou-se, para mim, num lugar onde se penduram, exibem e vendem pedaços de cadáveres, ao quilo. E entre o sabor de um bife, a repulsa pelo corpo morto e a amizade e respeito pela essência animal, ganharam os últimos.
A minha conversa telefónica com o Marco terminou dizendo-lhe que o projeto me interessava na mesma medida em que me causava repulsa e acrescentei que se o tema me procurava era porque me queria. Não há acasos e não podemos fugir ao nosso destino.

2 – Ruminação

Antes de viajar para Great Yarmouth, onde iria assistir aos ensaios de Provisional Figures e tomar contacto com uma realidade que desconhecia e temia, fui enviando e-mails de trabalho, relacionados com o que ia pensando sobre o assunto. Lembro-me de dois, que me parecem relevantes para esta pequena narrativa do meu envolvimento no projeto. O primeiro relaciona-se com a pobreza, a miséria e as grandes alterações que se deram no nosso país desde os idos do salazarismo. A reflexão foi suscitada por uma foto da campanha eleitoral de Humberto Delgado, na qual se veem camponeses à beira da estrada, nos arredores das Caldas da Rainha, aguardando a chegada do general, endomingados mas descalços. O meu pai era das Caldas, o que despoletou na minha memória a voz da minha mãe a sugerir que o meu pai teria passado fome, teria andado descalço, assunto que a boca dele nunca pronunciou, por ser demasiado verdade ou demasiado mentira. Entre as histórias que ele me contava do seu passado e as que dele me revelavam, nas suas costas, está um mundo de especulação e mistério que não me interessa desvendar. Interessa-me que o meu pai nunca me disse que andou descalço ou passou fome. Portanto, “o teu pai, isto, o teu pai, aquilo”, tudo mentira! O que ele me contou e é o que vale, é que ia roubar fruta nas quintas para lá da estação, e que o professor primário arriava nos alunos violentamente, motivo pelo qual ele fugia da escola, e que o que lhe valeu para arranjar habilitações foi a tropa, mas que mesmo habilitado não havia futuro em Portugal. Esta é a voz do meu pai e a de mais ninguém, porque tudo o resto é fantasia. O meu pai nunca andou descalço. O meu pai nunca passou fome. Vade retro vozes da injúria! O meu pai amava, como eu, os animais. O meu pai nunca teria trabalhado numa fábrica de derivados de peru. Apesar disso, comia carne e ignorava todo o horror que era um matadouro, onde até podia ir fazer uma instalação elétrica, se fosse preciso, e de onde regressaria horrorizado. Esconder-me-ia essa realidade. Dir-me-ia, “não são assuntos para ti nem para ninguém. Não tens idade nem nunca terás.”
O meu pai emigrou para Moçambique depois da tropa. Teve de ser. Uma pessoa tem de ganhar a vida.
O segundo e-mail enviado ao Marco Martins surge na sequência de uma leitura de Dona Haraway, segundo a qual percebi, a certo passo, que colocava a hipótese de um abate ético de animais para a nossa alimentação, em certos casos. Umas horas após tal leitura, aconteceu-me ver um vídeo no YouTube, no qual senti uma crueldade notável, embora o título fosse “The cutest video ever”. Não resisto a descrevê-lo tal como o entendi. Trata-se de uma criança árabe com cerca de cinco anos que, vendo o pai pegar numa faca e na galinha, pronto a degolá-la,  corre atrás do progenitor chorando e suplicando pela vida do animal. O pai cede. O vídeo parece ter sido encenado para suscitar a esperada e genuína reação do pequeno. O menino salva a galinha, aflito, ainda chorando e corre com ela entre os braços, para longe do pai, onde a liberta. Isto não só me lembra inúmeros episódios de morte de companheiros animais na infância como destruiu parcialmente a construção teórica de Haraway.
Se há porventura uma morte ética, uma morte que se pode aceitar para justificar a nossa própria existência, porque não a aceitam as crianças? Porque é que a morte de um animal lhes causa um sofrimento sem justificação? Porque choram elas? O que as fere tão profundamente? Com que se revoltam as crianças?

3 – O centro do mundo

Não há muito para fazer em Great Yarmouth. A praia está vazia. O frio e a chuva apertam. Compro um casaco na rua Augusta, a mesma de onde, no dia anterior, trouxe um rabicho de peluche rosa choque que me divertiu. A rua Augusta, mesmo com o devido nome britânico parece um arraial de província. Em Great Yarmouth o ambiente é de trabalho ou de contemplação. Como diz o Sérgio, a certa altura, nos ensaios, a vida para quem não tem trabalho, em Great Yarmouth, “é andar de café em café”. O Central, o Los Locos e os restaurantes onde toda a gente fala português. Para além disso, há os ensaios, e o centro do mundo são os ensaios.
No sea front sucedem-se as superfícies atulhadas de máquinas de jogos. Parece Las Vegas, mais vazia e sem fulgor. À noite, há o karaoke das músicas românticas, o restaurante Othello, propriedade de um cipriota que sabe cortejar uma mulher como manda a lei e o Long John, discoteca onde os códigos de sedução são de outro mundo. Observo uma jovem oferecer o seu abundante tecido mamário ao rapaz que passa. Ele mergulha a boca no seu pronunciado decote e inspira o cheiro íntimo da carne. Trocam um beijo de língua por segundos, e cada um segue o seu caminho. Tudo consensual. Há de haver mais entretimento pela cidade fora.
Interessam os ensaios, ou seja, o centro do mundo. Seis homens e duas mulheres. Apenas três falam português. Sinto-me imersa no ambiente consagrado a uma liturgia que acontece no momento em que os oito participantes a se entregam ao cometimento com concentração e generosidade inquestionáveis. Vejo ataque, estocada, cura e consagração. Tudo junto. Emocionam-se, com frequência. Há lágrimas. Não é fácil assistir ao que é feito. Por momentos fico paralisada.
“O que é o centro do mundo? É estranho que me pergunte isso, agora. Acabámos de nos conhecer. Mas já que pergunta, o centro do mundo… acho que é… o amor. Sim, é o amor.”
O Marco senta-se com os braços cruzados, vê e ouve, muito sério e atento. “Bom. Está bom, pessoal.” Dá instruções. “Faz isto. Podes dizer aquilo.” Levanta-se e dirige-se a um dos participantes. “O teu texto lido não funciona. É melhor contares a história tal como te lembras dela.” Provavelmente nunca ninguém disse as palavras que ali usa. Muito menos ousou os gestos. Tudo os transcende mas procuraram-no e comprometeram-se. O que é que interessa? O que é que realmente compreendemos de tudo o que somos levados a fazer? Olho para o Marco. Parece-me o xamã daquele ritual. Chamam-lhe teatro.
Procuro orientar-me relativamente ao que está a ser feito e escrevo no meu caderno alguns apontamentos insuficientes para abarcar a grandeza que atravessa o grupo nos ensaios.
Escrevo: após ter sido transportada aos ombros, como um saco, uma carga qualquer, Victoria é depositada no chão e fica a chorar. O Marco diz que é normal chorar-se nos ensaios. Victoria é a ex-miss Great Yarmout e a sua história é longa. Conta-a.
“Como acabei o secundário com baixas, não pude seguir artes, como desejaria. Acabei a trabalhar como cabeleireira, mas rapidamente me fartei. Achava que a vida tinha de ter mais encanto. Candidatei-me a um emprego como animadora numa estância de férias, na ilha de Whight. Devo dizer que escolhi a audição errada. Devia ter comparecido a uma outra, em Londres, que vim a descobrir ser para apurar uma cantora para compor as Spice Girls. Ficou a Victoria Beckam. Achei que Londres não era suficientemente longe para me separar do meu namorado, do qual queria fugir. Enfim, correu tudo mal na Ilha de Wight. Acabei despedida e de regresso ao cabeleireiro. Ganhei o título de Miss Great Yarmouth porque os meus amigos me desafiaram a concorrer. Tirei imensas fotos, posei com roupas diferentes, apareci nos jornais, mas sentia-me sempre insegura. As drogas, a certa altura, ajudaram, mas hoje trabalho como médium e terapeuta de medicinas alternativas. Este pendente que uso é um escudo magnético que me protege de energia nefastas, nomeadamente as dos smartphones. A vida, para mim, não tem sentido. A morte também não.
The center of the world? It’s funny you ask me that. We have just met. Well, it’s love. Yes. It´s love.
Escrevo: Smells like teen spirit cantado por Patti Smith. “Here we are now, entertain us/ A mulatto, an albino, a mosquito, my libido.”
Escrevo: Os atores são atletas correndo em câmara lenta, com as bocas abertas, em esforço. Chegar ao fim, chegar ao fim. Bob reproduz a morte de uma ave, fechando-se sobre si, muito devagar. O Bob não tem peso. Não está cá. Ao morrer, ela solta-se do seu peito, transcende o telhado de The Drill House e eleva-se no céu à procura de sol e humidade, como as que protegeu no santuário nacional de aves.
“Agora abraça-o, Sérgio, como se o protegesses do frio”, pede Marco. Coxeando, baixando-se com dificuldade, Sérgio abraça Bob como se amparasse um caido do ninho. “Agora conta a tua história”, pede Marco.
Sérgio caminha em direção ao que chamo boca de cena, com a ligadura azul segurando a articulação do joelho.
“Eu trabalhei num circo que ajudava a montar. A índia e a espanhola das cobras chamavam-me para tomar o pequeno almoço com elas e eu lá ia. A india é esta da tatuagem na perna esquerda. A espanhola das cobras é a da perna direita. Ela engolia as cobras. Abria a boca, assim, e engolia. Eu gostava das duas. Convidavam-me para tomar o pequeno almoço, o que é que eu havia de fazer? Está-se a ver, ia. Esta tatuagem aqui nas costas é do anjo. Mandei-a fazer quando morreu a minha falecida mãe. Ela esteve connosco cá em Inglaterra, mas faleceu por causa da cara, por causa de uma infeção com uma espinha de peixe, lá em Portugal. Eu trabalhava na fábrica a fazer o turno da madrugada, na sanitation. A gente tinha de fazer a limpeza das máquinas e das bins. Era só sangue. Tínhamos de limpar, botar os químicos e esperar que atuassem durante 45 minutos. Saía a gordura toda, mesmo naquelas coisas que faziam o puré de carne para coisar os filetes, os dinossaurs. Púnhamos tudo no lugar. Tudo limpinho. Para começar outra vez. Depois, uma vez, escorreguei e caí.
The centerovoud? The centerovoud? Yeah. I lobe ia. I lobe ia.”
“A fábrica era um cheiro a merda e a sangue”, diz Carmo. “Parecia o Inferno”. Não escrevo, respondo mentalmente, “não parecia, era.” Um cheiro a merda e a sangue. A merda, a sangue. A Carmo repete estas palavras até me doerem. A merda e a sangue.
“Fui contratada em Portugal. Disseram-nos que íamos embalar fiambre para uma espécie de Algarve inglês. Quando chegamos cá vimos que era tudo diferente. Fomos instalados em pensões. Havia brigas constantemente. Roubavam a comida do frigorífico. Vi um homem querer matar um rapaz por causa de dois coelhos. Na fábrica, começávamos a trabalhar às seis. Eu levantava-me antes das quatro. No primeiro dia, equipei-me com o over all e tudo, e quando abri as cortinas de plástico e só vi perus pendurados. Era um cheiro intenso a merda e a sangue. Comecei a vomitar e fugi, mas uns capacetes vermelhos vieram atrás de mim e disseram-me, “anda cá, anda cá”. O cheiro entranhava-se na nossa pele. Nunca saía. Aquilo parecia o Inferno”
O centro do mundo? Mal acabámos de nos conhecer e já me pergunta isso? Acho que é o amor. Sim, o amor.”
Anoto: temperatura muito baixa das áreas de trabalho; não aguentavam o frio; falta de solidariedade entre trabalhadores; lesões provocadas pelo trabalho são escondidas. Medo de ser dispensado. Anoto: capacetes vermelhos? – perguntar. Todos têm tatuagens? Perguntar. Escrevo: cicatrizes do Sérgio e da Carmo. Quantos deles têm cicatrizes? Penso e não escrevo: mostrar as minhas. O centro do mundo? Essa pergunta tem graça. Mal nos conhecemos. O centro do mundo! Bem, deixa-me pensar. O centro do mundo tem de ser a verdade. Sim, a verdade. A Carmo a imitar um peru com a cabeça muito erguida ou fazendo que lhes retira as vísceras e lhes fura o cu. A ave do Bob ao morrer. O centro do mundo são eles.

Isabela Figueiredo

Outsider 1

Dizes-me que estás farta de viver. Que a vida não tem sentido. Nem a morte. There´s no point at all. Estou contigo. Não tem. Mas mesmo assim gosto de a viver. Gosto de jogar o jogo. Acho que se existir a possibilidade de viver outra vez, quero.
Se acho ou se tenho a certeza?
Antigamente, o meu gozo da vida estava cheio de intermitências, mas isso foi antes do Prozac. Agora já gosto de viver outra vez. No fundo, do que uma pessoa precisa é da fluoxetina certinha. Por vezes divirto-me pensando que devia gravar um vídeo para a Lilly. Um spot publicitário. Eu, antes do Prozac. Eu, depois do Prozac.
Toma o teu prozaquezinho todos os dias. E o que raio é o sentido de uma vida? Ser famoso? Ser reconhecido? A vida tem mais sentido para ti se fores a Madonna, ou o Cristiano Ronaldo? Achas que a vida de cada um de nós depende do reconhecimento alheio? Quanto valor tem a tua vida? Vales mais do que o teu vizinho, do que os teus colegas de trabalho? O teu valor depende da tua beleza, da tua capacidade como profissional? Vales mais que um cão? És mais valiosa do que um peru? O teu valor, tu sabe-lo, está no que sabes ser o centro do teu mundo.
O centro do mundo, o que é o centro do mundo? Ainda bem que me perguntas de rajada e sem vergonha. O centro do mundo é… bem, vamos lá ver… O centro do mundo é… é andares à procura. O centro do mundo é… o trabalho em curso. Olha, o centro do mundo é o lugar onde te aninhas e dormes. O que é que tu escolhes comer, beber, o que é que te comove? Então isso é o centro do mundo. É estares aqui comigo agora dizendo que estás farta de viver. Desejar a minha atenção. O centro do mundo é isto. É estares viva e questionar, ter medo, hesitar. Não há mais nada. Mas o que querias tu que houvesse? Julgavas que a vida era uma visita ao País das Maravilhas. É. Mas de outra maneira. Se sentes dor toma um analgésico. Por que carga de água pensas tu que inventaram os analgésicos? Para nos matarem a dor. Portanto, se te queres matar, ou te matas, ou tomas um analgésico. Faz esse favor a ti própria. Ou então toma o prozaquezinho.

Isabela Figueiredo

Outsider 2

Ai, as mulheres sempre gostaram muito de mim. As mulheres adoravam-me. Para a escola é que eu não dava, que eu nem sei como é que fiz a quarta classe. Mas fiz. A quarta classe, antigamente, era uma coisa de vulto. Era mais do que agora, eu sei lá, aqueles anos avançados.
Eu tinha um negociozito de cassetes nas feiras. Os meus pais montaram-me uma barraca ao lado da deles, qu’eles vendiam roupa, mas eu gostava era de música. Então, as cassetes! Trabalhava lá com o meu irmão, ‘tava sempre lá a trabalhar, a trabalhar. Depois vinham as raparigas falar co’ meu irmão, mas vinham era pedir-lhe para irem dar uma volta comigo. Eu era engraçado. Tinha os cabelos por aqui. E elas gostavam de mim. Eu lá ia. Dava uma a volta com elas à roda da feira, mas ficava cansado! Queria era voltar pás cassetes. Depois, já não me lembro bem… arranjei um trabalho na construção. Com umas manilhas. Depois acabou tudo. Veio a crise.
Cheguei a trabalhar no circo. Esta tatuagem é da índia. Chamava-me pa’ tomar o pequeno-almoço com ela. Esta na outra perna era a espanhola das cobras. As mulheres sempre gostaram de mim. A índia dançava assim, zum zum zum, zum zum zum. A espanhola deixava as cobras enrolarem-se nas pernas, a subirem desde o tornozelo, depois chegavam à anca, continuavam a enrolar-se nela até à cintura, subiam por aqui acima, enrolavam-se nos braços e no pescoço, depois ela levantava muito o queixo, abria a boca, e enfiava a cabeça da cobra pela garganta abaixo até ao rabo. E ficava assim com a boca aberta. Haaaaah. De qual é que eu gostei mais? Nenhuma, nenhuma. Aquilo era só pa’ passar tempo. Ah, as tatuagens, porque é que fiz as tatuagens? Heh, nunca pensei nisso! Se calhar gostei. Eu sei lá. Também tenho uma tatuagem aqui nas costas!, que é do anjo, que fiz quando a minha falecida mãe faleceu, qu’ela apanhou uma infecção na cara por causa d’uma espinha de peixe qu’ela ‘tava a comer e espetou-se, e infetou, e aquase que perdeu a cara, ficou sem a metade. Esta tatuagem aqui no braço do Cristo é porque eu tenho uma grande paixão pelo Cristo, que ele protege-me, e a minha falecida mãe ‘tá com ele, que eu sei. Então, eu tenho aqui o Cristo, pa’ me proteger. Este dragão? Ah, este foi quando ‘tava no circo. Pois, foi quando ‘tava no circo. Qualquer dia faço outra aqui no peito da minha filha. Ela já sabe dizer galão em português. Mas a mãe dela, separei-me porque aquilo bubia muito. Não dava. Não era vida. Agora, lá na fábrica, o que eu fazia, era trabalhar na sanitation. Entrava à noite, pegava nas mangueiras, e nas bines, e limpava aquil’ tudo. Era gordura, era sangue, era porcaria… limpava tudo. Depois, desinfetava. Punha a lixívia, punha os químicos, aquilo deitava um cheiro! Os químicos? Aquilo tirava tudo. Nas máquinas, a gordura entranhada dos perus, saía toda a ferver cá pa’ fora. Era, como é que se diz? Pois, tóxico, era tóxico. E quando íamos fazer o breique, aquilo atuava. Depois, voltávamos, acabávamos a limpeza nas instalações e na maquinaria toda. E se sobrasse tempo até à hora da saída, que era já de manhã, mandavam-nos mudar de capacete e ir p’rá linha de produção. A gente fazia tudo. Na sanitation era eu e aqui o Pedro que muitas vezes andávamos juntos. Agora o problema foi quando caí. Escorreguei. E já não me consegui levantar. No outro dia fui à enfermaria e mandaram-me para o hospital fazer exames. Ganhei uma infeção na anca. Fiquei com esta cicatriz, ‘tá a ver? Nunca mais trabalhei. A vida agora é andar de café em café. É uma tristeza…

Isabela Figueiredo

Outsider 3

O meu pai pôs-me no colégio militar quando vim de Moçambique. Andei lá uns anos, mas expulsaram-me no 10º ano, porque tive duas vezes negativa a Matemática. É uma das regras do colégio. Quem tem duas vezes negativa na mesma disciplina, adeus. O meu pai é veterano da guerra colonial. Não tem uma perna. Vive lá em Moçambique. Ele lá se arranja. Está sempre a fazer coisas, a reclamar. Eu sou filho de uma das suas três mulheres. Somos muitos. O meu pai disse “Vais lá para Portugal e vais estudar para ser um homem.” Meteu-me no colégio militar para eu ser alguma coisa na vida.
Eu não tinha ninguém em Portugal, apenas um tutor que tinha sido colega do meu pai na guerra, e que me ia visitar de vez em quando, uma vez por semana ou menos. Passava as férias no colégio com outros miúdos dos PALOP. Éramos sempre os mesmos.
Quando fui expulso, fui viver com um primo para os arredores de Lisboa. Andei a distribuir publicidade pelas caixas do correio, mas não estava a dar. Eu não gostava e não era vida. Não, não me meti em merdas. Podia. Não te posso dizer que isso não andasse à minha volta ou que não fosse solicitado. Mas o meu pai disse-me “tens uma irmã em Inglaterra, o melhor é ires lá ter com ela, e arranjares por lá trabalho.” E foi assim. Vim ter com a minha irmã. Quando cheguei, ela disse-me que eu não podia ficar na casa dela por causa do namorado. Fiquei assustado, e achei estranho, mas ela arranjou-me alojamento em casa de uma pessoa amiga, e eu pensei, “tá-se bem”. Não fiquei desamparado, e arranjei-me. Arranjei uma namorada e tivemos um filho. Da primeira vez que ela engravidou, abortou. Mas depois eu rezei muito a Deus e disse-lhe “pá, meu, ajuda-nos, vamos ser tão felizes se tivermos um filho!” E passados três meses ela engravidou. Foi maravilhoso.
Trabalhei na Bernardo Mateus na sanitation. Era uma merda de emprego. Agora sou carer. A coisa faz-se, mas no início custou-me. Não é fácil. Nunca imaginei que tivesse de dar banho a pessoas e lidar com tanta sujidade. O meu sonho é a música. Tenho uma banda, yeah! Gostava que me ouvisses tocar. Gostava mesmo de falar mais contigo. Vou com a tua cara.
Não, nunca mais fui a Moçambique. Acho que aquilo já não tem a ver comigo.

Isabela Figueiredo

Outsider 4

Quando eu era pequeno não me lembro de haver estrangeiros na minha escola. Alguns rapazes e raparigas africanos talvez, um ou dois. Eu e os meus pais viemos de Birmingham para Great Yarmouth quando eu era muito novo. O meu pai comprou uma pensão na rua principal e alugávamos os quartos na época alta. Estava sempre cheio. No Inverno havia menos gente. Aparecia sempre alguém ao fim de semana, mas nos dias restantes eu podia escolher o quarto em que queria dormir, inclusive a suíte. Era bem divertido.
A certa altura apaixonei-me e fui para Birmingham com a minha namorada. Eu tinha uma banda em Birmingham e compus muita coisa. Era conhecido. Eu sou uma pessoa sensível. Gosto de sorrir.
Depois aquilo correu mal e regressei. Agora, dedico-me a vender música na internet. Tenho um site e vendo jingles ou samples. Resulta. Estou mesmo entusiasmado com isto do teatro. Vamos a Portugal. Eu nunca fui a Portugal. Pode ser que arranje lá uma namorada, o que é que achas?
Mas se gostas de histórias, eu quero contar-te uma. Para te dizer a verdade, a verdadinha, eu tive um problema sério de adição. Quando saí de casa com a minha namorada e vivia da música, era tudo muito entusiasmante mas difícil. A vida é tramada. Há muita pressão. Uma pessoa tem medo de fazer alguma coisa errada. Tem medo de ser adulto. Ser adulto é bué sério. Eu desenvolvi o hábito de consumir analgésicos. No início era paracetamol. Nem te passa… Eu tomava 30 comprimidos antes de sair de casa. Sem os tomar não conseguia funcionar. Um dia entrei em overdose e fui parar ao hospital. Tinha um método para conseguir a minha dose diária de comprimidos, que podia chegar à centena. Nota que cada caixa de paracetamol, no Reino Unido, tem apenas 8 comprimidos e só nos vendem duas de cada vez. Portanto, eu ia a diferentes estabelecimentos e comprava duas caixas em cada um. Depois passei para a codeína. Quando ia comprar codeína, era na farmácia. Fingia que estava a precisar daqueles comprimidos pela primeira vez, para a gripe, a tosse. E os farmacêuticos perguntavam “mas conhece este medicamento? Já o usou? Sabe que não pode tomar muitos. Tem de consultar o seu médico.” E eu fingia que nunca tinha tomado, e que aquele uso da codeína era normal, mas não, claro que não. Um dia, ia a caminho da farmácia para mais uma vez fazer a cena, e tive um momento de iluminação. Pensei “eu não posso continuar a fazer isto. Não posso continuar nesta vida. Tem de terminar.” E parei mesmo. No início tive sintomas de abstinência como um heroinómano privado da sua droga. Vómitos, tremores, dores de cabeça, tonturas. Mas agora estou aqui. Tomo o meu antidepressivo. Estou bem.

Isabela Figueiredo

Outsider 5

A verdade não é um saber, mas um sentido. Só se chega a ela pelo coração, não pela mente. A mente ordena, organiza, gera, analisa friamente, mas só o coração reconhece o brilho cego da verdade pura. Só as crianças e os animais a reconhecem. Em criança fui magra. Não me lembro do meu corpo magro, quero dizer, não me lembro de ser um ser humano com um corpo magro. Lembro-me de ter um corpo, que usava bastante. Corria, pendurava-me, subia às árvores, esgueirava-me, vivia plenamente a corporalidade que me constituía, mas nunca me senti magra, tal como uns anos depois não passei a sentir-me gorda. O corpo que eu senti é o corpo que eu sinto. O corpo tem uma identidade, um nome que nós não conhecemos, mas o meu corpo nunca foi magro nem gordo, foi carne que se moveu, que agiu, que foi útil. Energia vital. Continua a sê-lo.
Isso de ser magra foi só até aos 11 anos. Depois entrei na puberdade, veio a menstruação, e comecei a crescer. Não me senti aumentar de tamanho nem alargar nas ancas. Não sentimos o que está a acontecer, apenas percecionamos o resultado acontecido. Hoje, gostava de ter uma ideia do que é ter um corpo magro, mas não guardo qualquer memória. Vejo-me nas fotos e reconheço-me, mas não me lembro de ter havido um momento em que pensei “esta é a minha perna, e é magra” como me lembro de ter pensado “para de roer as unhas, tens de parar de roer as unhas.”
Como será existir sem barriga, sem pneus na cintura, sem celulite nas pernas? Deve ser um grande vazio de interesse corporal. Sei apenas em que consiste ter o corpo presente. Um belo corpo que fui sendo ensinada a percecionar como feio. Mas somos sempre presos por ter cão e presos e por não o ter.
Nos tempos em que eu era uma criança magra, lembro-me de os familiares e amigos azucrinarem os ouvidos à minha mãe, “a miúda está magra! Porque é que a miúda está tão magra?” O assunto preocupava-a. Ter uma filha magra talvez lhe auferisse estatuto de má mãe. Na altura lembro-me de ouvir estas frases e de não ligar ou de pensar apenas “qual é o problema? O que é que tem de mal?” Entrava-me por um ouvido e saía por outro. Era apenas mais um daqueles que preocupava aos adultos e só a eles. Eu sentia-me bem. Mas eu não tinha poder. Não questiono nem estranho a minha anterior magreza, mas a minha aceitação da ausência de poder. O que era o poder para mim? Não me questionava sobre não ter poder porque sabia que um dia haveria de ser crescida e poder opinar? Na altura, eu aceitava. Era hábito. Era a regra. Contudo, sabia que podia agir às escondidas, privada e marginalmente. Para além do mais, sabia que na minha mente eu era livre e tinha todo o poder. Era a dona absoluta do meu pensamento, da minha convicção de justiça e da minha intuição. Por vezes cruza-me o pensamento a impressão de que fui uma criança miraculada. Eu saí desse milagre.

Isabela Figueiredo

Outsider 6

Em meados dos anos 80, eu e o Daniel andávamos na faculdade. Ele, a engonhar, engate no Bairro Alto, depois em Alfama, conheci este, conheci aquela, e metemos na cabeça que o que queríamos era emigrar para o Canadá, ou para a Austrália, ou qualquer outro lugar civilizado. Essencialmente, queríamos ver-nos livres dos nossos pais e viver as paixões desconhecidas e intensas que se encontravam à nossa espera. Queríamos farra sem vigilância. Lembro-me de termos ido aos consulados destes países, em Lisboa, de manhã cedo, o que sempre nos custou, para preenchermos as fichas de candidatura à emigração. Mal olhávamos para os formulários, percebíamos que nem eu nem ele possuíamos os requisitos necessários para um job. Não precisavam de mim nem dele no primeiro mundo. Não é que não soubéssemos limpar, trabalhar com crianças, ou em cozinhas, mas não era a nossa especialidade. Gostávamos de ler, de ir ao cinema e de arte. Tínhamos excesso de habilitações. Mentimos tanto quanto conseguimos no preenchimento dos papéis, e metemo-los com a vaga esperança de que eventualmente enganaríamos os funcionário consular e nos iríamos embora de Portugal. Portugal enclausurava-nos. Nem eu nem ele cá tínhamos nascido, não nos identificávamos com o pequeno meio do mexerico. Nessa altura ainda nos sentíamos desterrados. Sabíamos que nos esperaria, do outro lado do mundo, uma vida de trabalho não qualificado, mas acreditávamos que desde que nos mantivéssemos fieis ao nosso pensamento, portanto inteiros, nenhum trabalho nos desconsideraria, e fora dessas horas continuaríamos a ser aquilo que alimentava as nossas almas. Uns românticos! Por esses anos, havia portugueses a enriquecer no trabalho da minhoca, no Canadá. O que era o trabalho da minhoca? Nunca ninguém foi capaz de mo explicar satisfatoriamente, portanto eu imaginava que as pessoas andassem à noite, com botas de borracha até à coxa, enfiadas no meio da lama, dela extraindo compridas minhocas que depositavam em baldes, e que depois traziam para terra firme, onde alguém as comprava para… não fazia a menor ideia! A minhoca servia para quê? Para a pesca? Como é que era possível haver tantos portugueses a enriquecer da minhoca no Canadá?! Como se justificava a necessidade de tanta minhoca? Os canadenses pescavam o dia inteiro? Também havia portugueses na restauração, sobretudo nas cozinhas, a servir à mesa, e a lavar pratos. Nos anos 80, todos os portugueses em viagem lavaram pratos. Não era grande futuro. Mas nesse tempo não pensávamos nisso. O tempo não tinha limites. Seríamos eternamente daquela idade. Nada podíamos conceber para além do presente.
Eu tomei um destino diferente do Daniel, porque me licenciei, mas ele continuou mais uns anos de engate em Alfama para engate no Bairro Alto, e o curso nunca saiu, de maneira que acabou por emigrar para a Alemanha nos anos 90, onde estava a Pipi de Benguela, que tinha ido para trabalhar como baby-sitter, tendo acabado por, poucos meses depois, se transformar na baby-sitter do seu próprio filho: tinha chegado à Alemanha grávida de um gajo qualquer, peço perdão, de dois gajos quaisquer. Ela não tinha a certeza se a criança era filha do patrão indiano ou do patrão português. Uma coisa era certa, a criança era filha de um patrão, e nenhum deles a tinha tratado suficientemente bem. Na Alemanha, a Pipi de Benguela tinha deixado de trabalhar: vivia do subsídio de maternidade. “Parece-me bem. Eu também gostava de ter um subsídio desses”, comentei com o Daniel, quando o fui visitar a Darmstadt onde existia um formidável museu de Joseph Beuys. Sim, nós éramos esse tipo de pessoas. Ele começou por ganhar uns tostões trabalhando em restauração. Lavava louça e fazia saladas com alface e tomate-cereja com uma perfeição como nunca vi. Partia as folhas da alface de forma cirúrgica, quase quadrada. Nas cozinhas onde trabalhara tinham-no ensinado a fazer assim, e ele orgulhava-se bastante dessa competência. Trabalhou também como bilheteiro num cinema, à noite, e gostava, porque via todos os filmes. Para além disso dormia, lia os livros que eu lhe enviava pelo correio e cujo destino se perdeu, bebia cervejas, e engatava, ou era engatado, em cenas de sexo rápido no qual sempre foi especialista. Quando regressou a Portugal, meia dúzia de anos mais tarde, tinha duas novas excelentes competências: fazer saladas, e falar alemão. A segunda deu-lhe de comer até ao dia em que morreu.
O Daniel, apesar de todas as vicissitudes e idiossincrasias do seu projeto de vida, manteve-se fiel à pureza dos seus instintos. Também eu. Nunca emigrei, mas fartei-me de ser escrava dos outros, na terra que me enclausurava, onde não nasci, mas que, no final de contas, era a minha. Teria sido bom chegar com ele a esta conclusão, mas a vida tem projetos que nos transcendem.

Isabela Figueiredo

Provisional Figures
by Marco Martins

Provisional Figures is the name used in statistical studies to classify all migrants whose situation and status is undefined or provisional and who are currently working in the United Kingdom.

Provisional Figures crowns a two-year research process with the Portuguese community living in Great Yarmouth (United Kingdom), and invites audiences to reflect on identity and migration issues in an urban context severely hit by the economic crisis and consequent social unrest.

Although relatively unknown in Portugal, the darkest years of the economic crisis (2009-2014) were the height of this migration boom, which saw the large food processing plants (turkeys and chickens) in this Norfolk area as its ultimate destination, an area particularly hard hit by unemployment. Taking advantage of the decline of this coastal town, once a preferred holiday resort for the British, plants in the region took the accommodation available in hotels and semi-abandoned caravan sites as an opportunity for housing their new workers.

Distant in time and space from the great migration waves to France and Germany at the end of the Second World War, when approximately one million and a half Portuguese emigrated to escape hunger and unemployment, the Portuguese emigration to Great Yarmouth differs fundamentally from its precedent. A continually moving mass of the so-called “flexible work”, emerging as a response to the demands of new economic systems.

After working closely in Great Yarmouth with nine inhabitants of various nationalities over several months, Marco Martins brings us a show based on an original idea by Renzo Barsotti, disclosing the individual testimonials of those who personally experience this period of uncertainty, exploring the contradictions of human behaviour and the nature of the relationships between men and other animals.

The texts and images of this residency are the result of extensive research led by Marco Martins among the town’s inhabitants and of the joint work carried out by the artist and André Cepeda, Isabela Figueiredo and Gonçalo M. Tavares.

Europe (I)

Exactitude

You know how they love to measure. They love the very act. The act of looking, touching something lightly – numbering it, locking it into that number. That is measuring. You know how they love to measure. In essence, is the act of identifying something, giving it a number to classify it, identify it. That is what measuring is. Measuring classifies, defines, identifies. One look defines, judges, measures. They don’t need to touch. Touch is secondary, a detail, additional information. Not the essence. The essence is measuring. Looking matters. You can measure just by looking, without intimacy, without touching. It’s the looking that matters. These are two distinct, separate acts: looking and touching. And one is just more efficient than the other. That is all it is. It’s that simple, really. And you should measure everything precisely, that is very important. Because measuring is precise, and identifies with exactitude. It is imperative to be exact. What is quantified exactly is real; what is not exact is false, fantasy, lies. Morality should be measured with the same demanding exactitude you would use to measure a table. Each measure must produce a number. An identifying, quantifying, precise number. If you take an exact measure of the table you eat on with your friends, then you should measure their actions with the same rigour. You should measure them to the exact fraction of a centimetre, millimetre.
The meticulous measurement of another’s actions and another’s words is essential. But not just their speech, their gestures, or their acts; what you see and hear is easy to measure. Because what you see and hear is indelibly recorded by the senses.

Europe (II)

Property

Each one of us has the right to an area measuring exactly four square metres. Four square metres may not sound like a lot, but it is. Four square meters allows you to lie down in the exact centre and roll over twice to each side. Rolling over twice to each side is more than enough. You can fornicate standing up in four square meters. Or if you do it lying down, rolling over twice, left or right, it is more than enough. If you hit the wall you know that you have to roll the other way. You get used to it. It’s easy.
You don’t need more than that, not even for nightmares. No-one tosses and turns and rolls over more than twice in a nightmare, and if you do, you hit the wall and wake up.

What is powerful but inexact must be expunged, eliminated. That which is inexact but weak, may be simply excluded.
Killing, destroying or eliminating all need more energy than the simple act of exclusion.

Europe (III)

Numbers

Objects are numbered. Your personal effects have numbers. Take a good look. Turn that object around in your hands, scrutinise every inch. Somewhere you will find a number. It might be minute, invisible to the naked eye, a secret revealed only by a magnifying glass or a microscope, but you will find a number. Every object has a number. Everything has a number. Clothes, books, furniture, each and every wall. It is all numbered. Even you have a number. You should examine your own body, subject it to the same careful scrutiny, and look for your number. We all have a number; it’s just invisible to the naked eye. You need to master the correct technique, and use the right instruments to see it. Of course, these aren’t always the same techniques or the same instruments. Each person has their own number, but it can be in any one of thousands of different places on the body. There is no exact logical place for that number.
They placed that number on your body, and as you know they are masters of the random. They may inscribe a number on your skin and you can only see it under a microscope; or they may have placed it on your scalp – and you will only find it if they decide to shave your head.
Your number may be on one of your internal organs, on your lung tissue, on the surface of a cell. Or your number may be engraved on the inside of your testicles, or your bladder. Your number may even be external, but so well hidden that you never see it.
You may not know where it is, but you have a number. You may not know how to find it, or you may look for it using the described methods, or you can find it by chance, by accident, or someone may accidentally find it for you.
But you do have a number. Every one of us has a number. Sometimes, someone has a limb amputated and discovers that number written clearly on the exposed flesh, a hidden secret now flowering outwardly.

Europe (IV)

Register

We all owe obedience to the State Register. Let me tell you how it works. A siren blasts - it’s not exactly a sound, it’s more of a constant strident, deliberate demand that hurts your ears. Everyone recognises it. There is nothing else like it. It is the State Register.
In a State subject to the State Register, they are very meticulous about private property. Any error or misdemeanour that infringes on private property is very serious. This type of infraction is not punished by Exclusion. A misstep on private property is not curtailed by reducing your own personal space; they will lay hands on your body. They will peel open your flesh, enter you. They won’t beat you. They will possess your body, they will do you harm.
At that moment your personal space is an extension of your body. If anyone invades it you will be capable of murder. You are defending your very life at that moment. You are not defending your miserly square meters; it’s a fight for your life.
You may be waiting for a long time until they arrive. They are not in a hurry. They may up show in minutes, or even take hours. It may even take the State Register days to show up. It all depends on who you are, so you never know. All you know is that you have to wait in that space; you wait until they arrive and take the Register.

The State Register registers everything. When they get to your compartment they immediately register you as living or dead. You might well have died there, waiting. If you are dead it’s a lot quicker. They don’t have to fill in so many details in their forms. They just cart you away.
If you are alive there is a lot more bother. Sometimes it seems that finding you alive upsets them. Instead of a quick minute, they have to waste a lot more time on you. If you are alive they have to measure you, weigh you. They examine your teeth, they draw your blood. They ask you to piss in a cup; they want your faeces. They will wait as long as they have to, but they will get them. They want sperm, saliva. They collect everything. They will wait as long as they have to. It’s for the register, they say - it’s not a social call. They are there to register everything.

They can only register what is motionless. That is why they force you to go into that space and be still. It isn’t just that you are in your personal, private space; they want you motionless until they arrive.
Be very careful when you chose a position in which to await their arrival. Remember that they may take hours, maybe even days. Remember that.

The register is very important. It is a map. They have a map of the space, a map of the individual property of those square metres and existing objects. The State Register updates the map continuously. Sometimes the Register will randomly confiscate an object and give it to someone else. This might happen on a register day, but it can happen on any other day.
They will come over with a document, as they always do, and show it to you.

Europe (V)

Money

They are the ones who give you money, of course. They are the ones who own it. They are the ones who give it to you and who take it away, too. They usually do it when you get registered. They check your property in square meters, your personal objects, and how much money you have compared to the previous register. When they ask, show them all your money. Don’t try to hide even one single coin. They will find it. They consult the register of all your financial activities: what you bought, when you bought it, what you sold. Every single commercial transaction is registered, then they just do the maths. Don’t tell themyou have five banknotes when you have six. They will check. Lying about the amount of money you have is not a piddling mistake. It is high treason.
You can’t fudge the numbers, and you are only allowed to speak once. You know that. It is one of the supreme laws. You may only speak once, and everything you say goes on record, on the register.
You should take as much time as you need before speaking, but when you do, you must not utter anything but the whole truth, nothing but the truth, without a single mistake. You can’t take it back. Those words are your testimonial to truth; if you make a mistake or tell a lie they will act. When it comes to numbers, their obsession with precision becomes overwhelming. You can’t go back on your words, rephrase or change a single digit.
If you quote a value, that is the number that will go down on paper. You cannot change it. If they ask you how much money you have, concentrate and answer only when you are absolutely certain. If you say the wrong amount of money, even if you correct yourself immediately, you are considered a traitor. Concentrate.

Europe (VI)

Inquiries

One of their most important duties is to make Inquiries. They want to know the truth, so they launch Inquiries. They want to make sure that you know the truth. The primary objective of an Inquiry is to ascertain that you know the truth. It is in essence a test of your knowledge.
It is a routine procedure. It is exactly like a medical exam. Where ever you may be, they can come up to you without warning and say: Inquiry. If you are sitting down, you have to get up immediately. You must always stand respectfully to respond to an Inquiry. An Inquiry can also take place in a public space.
During the Inquiry, they will question you in a low whisper, but you must respond in a loud, clear voice. Anyone present, or just passing by will be able to hear part or all of your answers.
The Inquiry is comprehensive. They ask you what you did and why you did it.
Every moment is scrutinized. No-one can hide anything: thoughts, acts, feelings. It is all questioned and brought out in the open. Some may be listening, others may ignore it, but you are forced to expose yourself publicly, completely.

Europe (VII)

Information

Knowledge is the end product of technology and work specialisation. Reports are produced on gestures, on the most effective ways of solving problems. The mass production of knowledge is constant; a cumulative stock that increases daily. Reports are analysed and reported on and compiled into report books. There are report books filled with sketches of efficient hand gestures: how to hold an object, the variable effectiveness of each motion, backed by the numbers and statistics. Knowledge produced comes from the analysis of the work, but also from the interpretation of work-charts. There are endless numbers of charts on every wall. Charts detailing the weekly changes in social hierarchy, results of medical examinations, updates of standards of some gestures or some phrases. Everyone is expected to consult these charts on the wall. Sometimes, in the middle of a chart full of irrelevant statistics, there may be a crucial directive. And if you don’t read it, you may inadvertently commit a serious mistake. So, no one dares. Every single person stops and reads every single word, every number, every iota of information, making sure there have been no significant changes in the rules. Only when they are sure that they know everything they should know do they go about their work.

Europe (VIII)

People were identified by numbers. Knowing someone’s number revealed a certain intimacy.
What really matters is the rate of universal productivity, achieved by the sum of individual efficiency. In the standardisation workshops, the maxim has always been: living in a community is not easy. It is imperative that the will of the individual be subsumed into the will of the whole. The unification of a community is a difficult task.

Gonçalo M. Tavares

1 – A phone call

My first reaction while speaking on the phone to the director of Provisional Figures about the project was revulsion for what I was hearing, and I told him so.
Marco was describing the plight of Portuguese workers labouring at a turkey processing plant in the UK. There have always been Portuguese working in England, but now, with the growing economic crisis, the number of migrant workers has grown exponentially.
In my area of residence, entire families have gone to the UK looking for work. Migrant work may not be prestigious, or accrue great social status, but it is good honest work.
The unemployed migrant worker asks no questions: he or she joins an assembly line at a factory, works at a kitchen in a hotel or a restaurant, help out at a retirement home, or drives a bus. It makes no difference what they do; they need to earn a living.
Marco told me about people who work in arduous precarious jobs, in a plant where turkeys are slaughtered, eviscerated, drawn and quartered.
I interrupted him, crying out: “Death factories!” At the other end of the line, Marco fell silent, then repeated: “Death factories.”
Slaughter houses are nightmares. No-one knows where there are, or what goes on there, and those who work there won’t speak about it. It’s the type of work that scars the heart, stains the soul. There are other ‘bad’ jobs, and most of those I can think about are related to dealing with scatological refuse; but thrusting your fingers into the still warm flesh of the dead, feeling their life-fluids running down your arms is unthinkable. “This is something I don’t want to think about, it hurts me, I avoid it, and which ironically haunts me.” That is the truth. Although I am not a vegetarian, I haven’t eaten the flesh of mammals or fowl in years for ethical reasons. Everyone knows that I was an only child, sheltered and coddled, and that in the absence of other children, I took animals as my playmates. Some of the darkest memories from my childhood are of the slaughter of domestic animals. My family raised chickens and rabbits and they were lovingly cared for. My mother bred them. She would make a special ointment to heal the skin lesions they would develop from time to time, from living in captivity, I presume. A rabbit in a hutch, a chicken in a coop, are animals in captivity. One of the ingredients of my mother’s ointment was powdered sulphur - sold by the kilo in drug stores - and olive oil; all of it blended in a mug, and then smeared on the muzzles, ears, beaks and combs of the ailing animals. It worked. The fur and feathers would grow back thick and lustrous. I’d rejoice. But later, those friends would be slaughtered, and I won’t revisit the memories of those brutal moments.
We also had goats, and those were purchased as kids and raised by hand. I was allowed to play and frolic with them. I’m sure I always communicated with animals, somehow. And when these animals eventually fulfilled the cruel destiny attributed to them by the natural order, and I was expected to savour the meat of these cherished friends at Easter, or at a birthday celebration. It was abominable. I was powerless to refuse; I could only lie, mislead, pretend to eat the flesh they fed me. It’s a child’s only power, avoidance, deception. These were agonizing meals. I would eat as little as possible. I felt like a cannibal. I don’t recall having friends my age, only cats, dogs, rabbits, chickens, birds and ants. Animals are somehow always magically our age, no matter what that may be. The human friends I had at that time were not my equals. They were older, and that created an insuperable distance, the exigency of respect. My human friends were my parents, and older girls I knew who wore makeup and had boyfriends – or longed for them. These girls were the daughters of my parent’s friends, and with them I could broach serious and sensitive subjects. Like boys, for example. But my carefree moments, my childish games and pleasures were shared with animals, who returned my affection sincerely and unconditionally.
At a certain point in my life it became impossible for me to see a succulent serving of suckling pig, or a pork chop on a platter without imagining the senseless massacre of a baby or a healthy animal, underserving of this cruel end. I started seeing a delicious grilled steak for what it really is: a piece of meat hacked from a corpse. A butcher’s became a place where cadavers are hung, exhibited, mutilated, their flesh sold by the kilo. I was divided between my enjoyment of the taste of that steak and my revulsion for eating the dead. Between my life-long friendship and respect for animals, I chose the latter.
I ended my conversation with Marco by telling him that I was interested in the project, even though the subject matter repulsed me. I added that if the theme pursued me, it was because it was meant to be. There are no coincidences, there is no random, you cannot flee from destiny.

2 – Rumination

Before travelling to Great Yarmouth, where I’d be attending the rehearsals for Provisional Figures – and delving into that reality I so feared - I sent on several work e-mails sharing my ideas on the subject as they occurred to me. I remember two that may be relevant to this testimonial about my involvement in the project. The first was about poverty, abject misery, the great upheavals that transformed our country since the long-gone days of Salazar’s fascist dictatorship. The idea was sparked by an old photo of the Humberto Delgado electoral campaign in 1958. It showed country folk standing by the side of the road on the outskirts of Caldas da Rainha, waiting for the General to go past. They were dressed up in their Sunday best for the great event, but were all barefoot. My father was from Caldas da Rainha, and that coincidence brought back into my mind my mother’s voice stating that my father had gone barefoot and hungry as a child. My father had never confirmed or denied it. Perhaps her words cut too close to the bone. Maybe they were too cruel a truth, or too crude a lie.
The stories my father told me about his past, and those told about him behind his back described a world of complex mysteries, and I prefer not to delve into them. It is curious that my father never told me he had gone barefoot, or been hungry. So those stories “your father this, your father that”, I will believe to be lies. The tales he told me are what matters: that he would pilfer fruit from the neighbouring farm’s orchards, and that his elementary school teacher would beat the students savagely, and that is why he ran away from school. He got to complete his education in the army, but even with a diploma, there was no future in Portugal. This is my father’s voice, and no-one else’s – and all else is fancy. My father wasn’t barefoot. My father never went hungry. Vade retro blasphemous voices! Like me, my father loved animals. He would never have worked at a turkey processing plant. He ate meat and ignored the horror of the slaughter houses, but if he had been called to work on an electrical installation at such a place, he would have been horrified by the reality of it. He would have hidden it from me. He would have said “This is not for you, or anyone. You are not old enough, and you never will be.”
My father immigrated to Mozambique after his stint in the military. He had to. He had to earn a living.
The second e-mail I sent Marco followed on my reading an essay by Dona Haraway, which, as far as I could tell, advocated the hypothetically ethical slaughter of animals for human consumption. Coincidentally, a few hours later I saw a video on YouTube, which I felt to be of unparalleled cruelty though it was entitled “The cutest video ever”. I can’t resist describing it exactly as I perceived it. A five year-old Arab boy sees his father pick up a knife and grab hold of a chicken, clearly intending to slit its throat. The boy runs after his father weeping and begging him to spare the animal’s life. The father relents. The incident was clearly set up to wring the desired – very genuine – reaction from the child, who takes the chicken in his arms, and still weeping, runs away with it. Some distance away from his father, he frees the animal. This not only reminded me of the innumerable childhood incidents in which my animal friends died, it also partly dismantled Haraway’s theory.
If there is indeed an ethical death, a death justifiable as being necessary for the continuation of our existence, why can’t children accept it? Why does an animal’s death cause such a disproportionate distress? Why do they cry? What wounds them so? What causes the children such repulsion?

3 – The centre of the world

There isn’t a lot to do in Great Yarmouth. The beach is empty. The cold and the rain are oppressive. I buy a coat on Augusta Street, where I had bought a pink velveteen scrunchy I’d found amusing the day before. Augusta Street, even with its very British name, looks like a country fair. In Great Yarmouth people either work or meditate. As Sergio comments during a rehearsal, life for the unemployed in Great Yarmouth consists of “drifting from pub to pub”, the Central, the Los Locos and the restaurants where everyone speaks Portuguese. Beyond that, there are the rehearsals, and the world revolves around the rehearsals. At the sea front there are rows of gaming arcades filled with slot machines. It looks like an empty, dingy Las Vegas. In the evenings there are Karaoke sessions with romantic music; a restaurant called Othello, owned by a Cypriot who woos women with swashbuckling verve; and a bar called Long John, where the rules of seduction are topsy-turvy. I watch a young woman offer her ample breasts to a passing boy. He buries his mouth in her deep cleavage and inhales the heady intimate perfume of her flesh. They lose themselves in a deep, tongue thrusting, penetrating kiss for a few seconds, then they each go their own way. It’s all consensual. There is plenty more entertainment to be had in town. I’m interested in the rehearsal, the centre of the world. Six men and two women. Only three speak Portuguese. I am submerged in a dense atmosphere that is almost spiritual, a sacramental liturgy performed by the eight participants with intense commitment, an unquestionable generosity and concentration. I see the thrust and cut, the healing and consecration. All at once. They are deeply moved. They weep. It’s not easy to witness. I am rendered motionless, paralysed for fleeting moments...
“What is the centre of the world? It’s strange that you should ask me that, now. We’ve only just met! But since you ask, the centre of the world…I think it is…love. Yes, it is love.”
Marco sits with his arms crossed, watching, listening, solemn and focused.
“Good. It's good, people.” He instructs them. “Do this. You can say that.” He gets up and approaches one of the cast members. “Your scripted text isn’t working. Just tell the story the way you remember it.” Probably no-one has ever spoken like that. No-one dared sketch those gestures. It transcends them, but they search for it, they commit themselves to the moment. What does it matter? What do we really understand of all that we are driven to do? I look at Marco. He is a Xaman presiding over a ritual. They call it theatre.
I try to keep track of what is being done and scribble some details in my note book, but these are inadequate to describe the grandeur that transfigurates the cast at rehearsals. I jot down my thoughts: After being carried like a load, a burden on indifferent shoulders, Victoria is deposited on the ground, and is left weeping. Marco says it is normal to weep at rehearsals. Victoria was once Miss Great Yarmouth and she has quite a history. She tells it.
“I finished high school with failing grades, so I couldn’t study Art as I’d planned. I ended working as a hairdresser, but I quickly got tired of it. I thought life had to be more exciting. I applied for a job as an entertainer in a holiday resort on the Isle of Wight. I chose to attend the wrong audition, I must tell you. I should have gone to another one in London, which I later found out was to pick a singer for The Spice Girls. Victoria Beckam got the job. I thought London was too close, and I wanted to get far away from my boyfriend. Anyway, everything went wrong on the Isle of Wight. I ended up getting fired and went back to the hairdresser’s. I won the Miss Great Yarmouth beauty pageant because my friends dared me to enter it. I was photographed, posed in lots of different outfits, made the papers – but I was always deeply insecure. Drugs helped for a while, but now I work as a medium and an Alternative Medicine therapist. This pendant I wear is a magnetic shield that protects me from malignant energies, specifically those emanating from smart phones. Life makes no sense to me. Neither does death.”
The centre of the world? It’s funny you ask me that. We have just met. Well, it’s love. Yes. It´s love.
I write: Smells like teen spirit sung by Patti Smith. “Here we are now, entertain us/ A mulatto, an albino, a mosquito, my libido.”
I take up my pen: The actors are like athletes captured in slow motion, mouths open, blown. Reaching the end, reaching the end. Bob re-enacts the death of a bird, folding into himself, very slowly. Bob is weightless. He is gone. As he dies, the bird frees itself from his chest, rises above the roof of The Drill House and soars into the sky looking for sun and moisture, the protection of the national bird sanctuary.
“Now you put your arms around him, Sergio, as if you were sheltering him from the cold”, Marco asks him. Limping, bending down with difficulty, Sergio embraces Bob as if he were a hatchling fallen from its nest. “Now tell your story”, Marco asks. Sergio walks towards the front of the stage, a blue bandage wrapped around his knee.
“I worked in a circus, I was a roustabout. The Indian and the Spanish snake charmer invited me to have breakfast with them, and so I’d go. The Indian is the one tattooed on my left leg, the Spaniard snake charmer is the one on the right. She swallowed snakes. She’d open her mouth, so, and swallow them. I liked them both. They’d invite me for breakfast, and what was I to do? Of course I went. This tattoo on my back is an angel. I had it done when my mother died. She was with us here in England, but she died because of her face, because of an infection cause by a fish bone in Portugal. I worked in the factory, in the early morning shift, in sanitation. We had to clean the machines and the bins. It was just blood. We had to clean it up, pour in chemicals and wait for them to take effect for 45 minutes. All the fat would ooze out, even from those things that grind the meat into mash for the dinosaur patties. Then we’d put everything back. All nice and clean. All ready to start again. And then, one day, I slipped and fell.”
The centerovoud? The centerovoud? Yeah. I lobe ia. I lobe ia.”
“The factory smelled of blood and shit”, Carmo said. “It seemed like Hell on earth”. I don’t write it down, but I think: “It didn’t ‘seem’ like Hell, it was Hell.” The stench of shit and blood. Shit and blood.
Carmo repeats those words again and again until it hurts. Shit and blood.
“I was hired in Portugal. They told me I would be packaging ham in the English version of the Algarve. When we got there, we saw how very different it all was. They booked us into guesthouses. The fighting was constant. People stole food from the fridge. I saw a man trying to kill a boy over two rabbits. Our work day at the factory started at six in the morning. I would get up before four. On my first day, I put on my overalls and the rest of my kit and when I stepped through plastic curtains all I saw were hanging turkeys. There was this thick stench of shit and blood, and I started to vomit. I ran away but these guys in red hardhats came after me saying: ‘Come here, come back…’ The smell seeps into your skin. You can’t wash it off. It seemed like Hell.”
The centre of the world? We’ve just met and you ask me that? I think it’s love. Yes, love. I note down: the temperature in the work areas is very low, the cold is unbearable. Little or no solidarity between workers; work injuries are concealed. Afraid of being laid off. Red hardhats? – ask about that. Do they all have tattoos? – ask.
I scribble: Sergio’s and Carmo’s scars. How many of the workers have scars? I think but don’t write: show my scars. The centre of the world? That’s a funny question! We barely know each other. The centre of the world! Well, let me think about that. The centre of the world, well it must be true. Yes. The truth. Carmo mimics a turkey with a proudly raised head, or pretends she is gutting it, piercing its anus; Bob’s bird dying. They are the centre of the world.

Isabela Figueiredo