Janas, Sintra, década de 1970. © O espólio de Ernesto de Sousa
O Perfil do Visitante
Um arquivo digital para Ernesto de Sousa
Em Outubro de 1972, no atelier de Eduardo Nery, Ernesto de Sousa projectou 300 diapositivos da sua visita à 5ª edição da “Documenta” de Kassel. Vistas do interior e do exterior do museu Fredericianum; dos visitantes e do ambiente; das performances; das manifestações de contestação local e à exposição, nas suas imediações. “O objecto anti-arte”, “o artista que se expõe a si próprio”, “o ficheiro biblioteca de certos artistas conceptuais”, “o misterioso ambiente ou o pavilhão onde se faz propaganda esteticamente agressiva de uma ideia”, “o museu de museus” e os “museus miniaturas”. Nesta apresentação, os autores das peças terão sido mantidos anónimos, à excepção do artista-obra, Joseph Beuys.
Esta apresentação foi uma das quatro sessões de divulgação da “Documenta 5”, a par dos textos publicados sobre o mesmo tema, no República e na Lorenti’s, e uma das dezenas (ou centenas, se contarmos com a publicação de artigos) de acções pedagógicas de Ernesto de Sousa sobre arte.
As suas entusiasmadas críticas a este evento dão conta da liberdade sentida enquanto visitante, o acesso a uma quantidade enorme de informação, que nem por isso estragava a surpresa do encontro com o objecto estético (mais ou menos matérico), as opções e a imparcialidade do percurso de exposição, a diversidade e a pertinência das escolhas curatoriais. Segundo ele, o visitante, não assistia: participava do acto estético. À arte era devolvida a função pedagógica de se imiscuir na vida e recuperar “o jogo, o convívio, o riso aberto”, “o brutal irrespeito” e a devoção ao sagrado espírito da “grande FESTA”.
(Já alguns dos artistas convidados para a “Documenta” tiveram uma percepção bem diferente destes termos de liberdade e participação. Dez conhecidos minimalistas e conceptualistas assinaram e publicaram um pequeno anúncio na Artforum, em Maio de 1972, que reclamava para os artistas o direito de controlar as condições de exposição do seu trabalho. Porém, dos dez, apenas quatro retiraram efectivamente os trabalhos da exposição.)
O deslumbramento de Ernesto de Sousa era justificado. A visita à “Documenta 5” permitiu-lhe o contacto directo com aquilo a que chamou “um verdadeiro clima de modernidade” e a exposição servia-lhe na perfeição para traduzir as ideias de vanguarda, que vinha a ensaiar e divulgar em Portugal desde a década anterior. Pelo fim do objecto-de-arte-de-consumo, por um movimento permanente de ruptura, pela indistinção entre arte e vida, pela indiferença do gosto, pela participação, pela recuperação da festa, pela reinvenção do mundo segundo uma “estética da indiferença” e uma “técnica da solidariedade”. A arte seria o veículo necessário às ideias de vanguarda, numa concertada operação de revolução social.
Nos apontamentos para a apresentação da mesma exposição no Ar.Co, Ernesto lista as imagens das peças a projectar, por nome de autor, com uma descrição formal sucinta. Apesar da apresentação ser especificamente dedicada à “Documenta 5”, desta lista constam peças, da então colecção Ströher, vistas no Landesmuseum em Darmstadt no mesmo período de viagem. Ainda que se tivesse deslocado com um objectivo definido, a digestão dos episódios paralelos do percurso fez parte da procura de sentido da experiência. A ideia de viagem dificilmente se esgota no estar em trânsito; ela é também coisa mental, é a possibilidade de surpresa com o passado e a disponibilidade para um presente em transição. O estado do viajante (não ler turista) é “estar em viagem” permanente.
Numa das aulas do curso “Conhecimento da Arte Actual” na galeria Quadrum, em 1977, Ernesto propõe:
“Exercício de observação, com x min. de atenção, com ampliação.
Quantos objectos há nesta pedra, neste pau, descoberta de um objecto com olhos tapados.”
O mesmo exercício por Robert Filliou, “O segredo da criação permanente é: ‘Em quer que seja que tu pensas, pensa noutra coisa. O que quer que seja que tu faças, faz outra coisa’”.
O mesmo exercício por um discípulo do budismo zen: Nada está fora da Mente. E o olho enche-se de montanhas verdes.
O mesmo exercício por David Wojnarowicz: A última fronteira para o gesto radical é a imaginação.
O arquivo documental de Ernesto de Sousa inclui cerca de 7000 diapositivos, produzidos entre finais da década de 50 e a década de 80, que entre correspondência, notas, textos, impressões fotográficas e negativos, são apenas uma ínfima parte da totalidade do seu espólio. Nem todos da sua autoria – uma pequena parte provém de ofertas de outros artistas –, são muitos os registos de exposições, performances e eventos, do convívio com amigos, das viagens feitas em trabalho ou em lazer. Os restantes registos são, sumariamente, recolhas iconográficas, tanto para estudo próprio como para apresentações temáticas, e incluem centenas de reproduções de obras de arte e registos de arquitectura e escultura. Muito deste material foi recolhido de propósito para ilustrar os programas de aulas e cursos da sua responsabilidade. É o caso de uma dezena de fotografias de objectos encontrados que lembram o traço icónico de alguns artistas estrangeiros. O bom-humor e descontracção deste tipo de registos fazem com que normalmente sejam descartados como material de arquivo menor. Mas e se os considerarmos na leitura de material consensualmente importante, como a “Documenta”? Estas imagens fazem perguntas sobre a legitimidade da autoria e a exclusividade do gesto considerado artístico, e alastram a dúvida a fotografias mais ambíguas onde não é claro o que se queria registar, nem a natureza do que é registado. E redireccionam
a atenção do De quem é? O significa? (e É arte?) para Como é?, da exterioridade para a interioridade de cada imagem e para as possíveis imagens dentro delas.
Desde Janeiro deste ano que se está a trabalhar na constituição de um arquivo digital do espólio documental e artístico de Ernesto de Sousa. Actualmente, o espólio está distribuído por várias instituições públicas, em depósito, e uma parte significativa permanece ainda na residência particular da herdeira de Ernesto de Sousa, Isabel Alves. O depósito é uma espécie de estado de existência intermédia:
o espólio é inventariado, disponibilizado para consulta (com reservas) e mantido em condições de conservação óptimas.
Quando é depositado, o espólio não pertence à instituição, o que justifica que não
se alargue o investimento à catalogação, isto é, a cotagem e descrição documento
a documento, a fase mais demorada do processo porque implica investigação.
Do espólio por depositar não há ainda um inventário. Os originais têm sido regularmente disponibilizados para consulta directa, reprodução e empréstimo
a artistas, investigadores e curadores, o que dificulta as tarefas de preservação
e organização dos documentos. No entanto, foi esta informalidade que permitiu
a divulgação e dinamização do espólio durante os 26 anos que passaram desde
a morte de Ernesto de Sousa.
O plano futuro parece ser a doação, desta parte do espólio, como das restantes,
a instituições públicas. Depois disso, serão precisos anos para que a totalidade do espólio fique novamente disponível ao público, até que se façam os inventários em falta e eventualmente, se houver capacidade humana e financeira, a catalogação dos documentos – acresça-se a dificuldade de cruzar informação entre instituições.
A digitalização é uma tendência que os arquivos e bibliotecas portugueses tentam acompanhar, mas é ainda um esforço pesado e na lista das prioridades secundárias. Mas nada disto é inevitável.
O primeiro passo é o desenvolvimento de uma base de dados digital que agregue os documentos e permita compilar e rever informação de forma sistemática. Isto está feito. O segundo passo é planear estratégias de colaboração a longo prazo entre instituições e envolver as universidades – efectivamente esta será uma importante ferramenta de investigação e só a proximidade à comunidade académica e artística garante que o espólio é um organismo vivo, isto é, que as leituras sobre a vida e a actividade de Ernesto continuam a produzir-se, muitas, novas e diferentes.
Claro que nos espera um longo spiel burocrático-legal até lá chegarmos. Mas isso não é difícil – se houver vontade. Ernesto de Sousa termina o artigo na revista Lorenti's sobre a 5ª “Documenta” em tom agridoce: “... mas estas técnicas só funcionam quando há abertura de sentimentos e de cultura, verdadeira inocência.
E isso sim: é difícil.”
Ana Baliza
Lisboa, Setembro de 2014
Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa (CEMES)
www.ernestodesousa.com
Colophon
Diapositivos por Ernesto de Sousa. Aspectos de exposições visitadas no Reino Unido, França, Alemanha, Dinamarca e Jugoslávia, entre as décadas de 60 e 70 e iconografia alusiva ao trabalho de alguns artistas.
Selecção por Ana Baliza, Agosto-Setembro de 2014.
© O espólio de Ernesto de Sousa, CEMES, dos artistas e da autora
Índice de cotas nesta selecção
104-REFEstruturas minimais (alusivo a)
149-REFJoseph Beuys (alusivo a)
150-DOCTate, Londres, 1971Robert Morris
167-DOCDocumenta 6, Kassel, 1977Hans-Peter Reuter
168-DOCStaatstheater, Darmstadt, 1972Arnaldo Pomodoro
173-DOCDan Flavin (alusivo a)
199-DOCDocumenta 6, Kassel, 1977Robert Morris
234-DOCMuseu de Arte Contemporânea, Belgrado, 1973Iginio Balderi
236-DOCParis, 1969Carlos Cruz-Diez
240-DOC10ª Bienal de Paris, 1977Marina Abramovic
255-DOCNovas Tendências 5, Zagreb, 1973Daniel Buren
257-DOCMuseu de Arte Moderna da Louisiana, Humlebæk, 1975Hans ArpSol Lewitt
350-DOCReiner Ruthenbeck (alusivo a)
358-DOCDocumenta 5, Kassel, 1972Haus-Rucker-Co
361-DOCDocumenta 5, Kassel, 1972Mario Merz
363-DOCDocumenta 6, Kassel, 1977Harald FrehenHaus-Rucker-CoReiner RuthenbeckRichard Serra
365-DOCChristo (alusivo a)Robert Morris (alusivo a)
nl-DOCLandesmuseum, Darmstadt, 1972Joseph BeuysReiner RuthenbeckDocumenta 5, Kassel, 1972Joseph BeuysNancy GravesEdward KienholzDavid Medalla / John DuggerBruce NaumanPaul ThekDani KaravanGeorge TrakasGilberto ZorioTate, Londres, 1971Robert MorrisMuseu de Arte Moderna da Louisiana, Humlebæk, 1975Duane Hanson